Terraleste #101 | Frank Coghlan Jr.
Uma memória e o último conto de Os anos de vidro — mas não só.
Um.
A cena é simples em tudo quanto possa haver de simplicidade numa tarde de sol, televisão ligada, sala, o espaço: a casa da minha avó. Ainda não houve a pintura das paredes, os quadros pendurados, creio até que o sofá não existia, mas sim as duas poltronas com um forro amarelo horroroso.
Estou sentada na poltrona que fica em frente à TV, de cueca, talvez sem camisa. Tenho uns doze anos, quiçá menos. Assisto ao seriado de cinema do Capitão Marvel, de 1941, que pedi e ganhei o DVD — e venero. Ou então só estou na sala assistindo à TV quando a pessoa chega e por algum motivo menciono o seriado do Capitão Marvel e se dá um diálogo mais ou menos assim:
— Quem é esse ator?
— Frank Coghlan Jr., ele faz o Billy Batson.
— Frank Coghlan Jr.? — a pessoa ri. — É a maior bichona. Era presidente da Liga Gay da Califórnia.
Minha avó está por perto e diz para eu não acreditar.
— Era sim — a pessoa continua. — Uma bichona. Pode pesquisar.
Dois.
Em 2022, escrevi o conto que encerra Os anos de vidro, meu novo livro, que chega às livrarias em junho. Ele se chama “O tesouro do Capitão Floresta” e basicamente traz, entre outras coisas, um sujeito que, na década de 1940, decidiu fazer um seriado de cinema no Brasil. Eu carregava essa história comigo há tempo suficiente pra quase pirar precisando escrevê-la porque, bem, a grande paixão da minha vida cinematográfica na infância e começo da adolescência era o cinema clássico e especialmente os seriados dos anos 1930 e 1940, que descobri ali no começo dos 2000 quando a Classicline começou a soltar no Brasil e en-lou-que-ci: comprava tudo, via tudo, queria me teletransportar praquele tempo — como se não bastassem todos os outros motivos, a música, os looks, o clima, enfim.
Pois bem.
Escrevi “O tesouro do Capitão Floresta”, cujo título evoca o do último capítulo do Capitão Marvel de 1941, e em algum momento me lembrei daquela cena. Eu já não falava com a pessoa, ou estava em vias de não falar, e a imagem do ocorrido na sala grudou tão, mas tão forte, que considerei uma espécie de justiça comigo mesma, uma criança lutando para ser homem cis e hétero — afinal do nada qualquer um poderia ser presidente da Liga Gay da Califórnia e isso era claramente horrível —, que um conto como aquele estivesse no livro. Mais: encerrasse o livro.
[Há outras trocentas coisas nesse conto, mas isso vocês descobrem lendo — espero —, o importante hoje é:]
A cena do Frank Coghlan Jr. e o meu corpo na sala da minha avó permanecem os mesmos, indevassáveis pelas vozes de qualquer pessoa, porque não tem uma vez que eu pense no Frank Coghlan Jr. ou assista ao seriado do Capitão Marvel, como fiz há uns meses, e não pense: puta merda, eu consegui sair disso. De algum modo, num ímpeto muito custoso mas muito, muito gratificante, em julho de 2021 eu entrei numa Renner, peguei um macacão na seção feminina, fui pro provador e tirei umas selfies pensando: não tem mais volta. E disso deriva tudo.
Três.
Porque veja, ali, na sala, eu tava completamente rendida. Para a pessoa, qualquer coisa era coisa de bicha — meu jeito de andar, a desmunhecada ocasional ao sair do banho, os gostos, a sensibilidade, enfim, tudo, tudo era passível, até mesmo um ator obscuro dos anos 1940, de ser enquadrado como errado, logo homossexual, logo — enfim, vocês entenderam. Levou um tempo doloroso — e disso sim eu me ressinto, o quanto de dor foi soterrada em nome de um projeto dir-se-ia criminoso de sufocamento do outro — pra esse não tem mais volta. Que era também não ter mais volta de levantar e dizer chega pra pessoa e tudo que ela representava e me assumir pro mundo como eu sempre soube ser, isto é, uma pessoa trans.
Falei no Instagram semana passada do quanto me diverti escrevendo Os anos de vidro — nada me dá mais tesão que escrever ficção. E nada me enche mais de satisfação do que saber que um texto surgido numa noite em 2022 de algum modo retorna até anos antes e dá um abraço naquela criança treinada, educada, forjada para ser o que ela nem sabia que era possível não ser sem falar olha, quando eu era criança aconteceu isso.
O conto existe por si só. A história daquele homem querendo criar um herói nacional existe por si só. A minha história não é o conto, ainda bem.
Eu sou só a cavala.
Quatro.
Frank Coghlan Jr. foi ator mirim e tinha 25 anos quando interpretou Billy Batson no seriado de cinema Adventures of Captain Marvel, de 1941, até hoje considerado um dos melhores de todos os tempos — e meu preferido. Durante a Segunda Guerra, ele se alistou na Marinha como aviador naval. Ao se aposentar, em 1965, tinha mais de 4500 horas de voo acumuladas entre a Segunda Guerra, a Guerra da Coreia e o Vietnã.
Faleceu em 2009, aos 93 anos, e foi casado com Betty Corrigan [morta em 1973] e Letha Schwarzrock [morta em 2001]. Deixou um filho, três filhas, três enteados e seis netos.
Atenção: lanço Os anos de vidro no dia 7/06, sábado da semana que vem, na Janela Livraria do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. A partir das 16h vou bater um papo com a crítica Beatriz Resende e depois autografar. Também é meu aniversário. Venham!
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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