Prólogo.
Estou no metrô com minha mãe e tenho uns nove, dez anos. Um homem para ao nosso lado e ela o reconhece — é um amigo, fundador de um bloco de carnaval importante; começam a conversar. Antes de descer no Largo do Machado, o sujeito se vira para mim e pergunta se eu gosto de música brasileira.
Não, respondo. Detesto.
Ele sorri meio constrangido, minha mãe morre de vergonha e a cena passa à história familiar como uma anedota engraçadinha, considerando-se que eu não conhecia nada de música brasileira — não se ouvia muito em casa — e também porque a partir do final da adolescência eu mergulharia nela com força — mais tarde, até faria um mestrado sobre Caetano Veloso.
Tempos depois daquele dia, eu estava de castigo pela enésima vez, sem poder usar o computador, quando meu pai se aproximou e disse que ia me mostrar uma coisa. Eu já contava uns treze anos, por aí, e ele abriu o saudoso LimeWire, baixou uma música e disse: escuta isso.
Era Chico Buarque cantando “Jorge Maravilha”.
Minha vida nunca mais foi a mesma.
Um.
Enquanto espero M. chegar, observo a faixa de prédios do Centro à minha frente; o enorme painel luminoso no topo de um deles borra de amarelo minha visão e numa nesga se espicham a Catedral e, antes dela, como um risco iluminado, um monolito diante dos bichos ansiosos que somos nós, o Monumento aos Pracinhas.
Nunca deixo de me indagar sobre as sucessivas destruições e aterros por que a cidade passou nos últimos cento e cinquenta anos. Que onde havia água e areia haja o asfalto singrado por carros e mais carros, as quadras de soçaite e tênis, o Aterro manifesto em toda sua glória, é um espetáculo que não cessa de me impressionar.
Um avião levanta voo e seu rugido varre o campo aberto da Marina, onde o palco desligado começa a receber o primeiro público. Uma confirmação, penso.
Dali a uma hora, Gilberto Gil vai subir diante de milhares de pessoas e entoar as quase trinta canções de sua turnê de despedida. É minha segunda vez nesse show, meio que já decorei o setlist. Ainda assim fico maravilhada.
Minutos antes de começar, enquanto as propagandas rolam nos telões, somos informados de que Chico Buarque será o convidado da noite. Ao meu lado, M. anuncia que vai chorar, e eu digo o mesmo. Me parece a única reação possível. Pego o celular e aviso a C., do outro lado da pista — quando ele cantar “Cálice”, pensa em mim que vou estar pensando em você.
Mas nada te prepara pra, numa noite de domingo, Chico Buarque se materializar de fato a quarenta metros de distância e cantar “Cálice” com Gilberto Gil.
Dois.
Meu mestrado inicialmente seria sobre o livro Feliz ano novo, de Rubem Fonseca, e o disco Transa, de Caetano Veloso, como obras que refletiam o Brasil da ditadura. Eu pretendia fazer uma leitura dupla e analisar o país que surgia nas páginas, nos sons.
Um mestrado tem um tempo de execução curto entre leituras e escrita, enfim, dois anos não era quase nada. Ainda no início, entendi que não daria conta de reler todo o Rubem Fonseca, mais comentadores, e fazer o mesmo com o Caetano. Achei melhor ficar com o Transa. Já ouvia Caetano praticamente o dia todo, lia muito a respeito, seria o mais sensato a fazer, por mais que me doesse abandonar o livro do Rubem, um dos que mais reli na vida.
Digo isso porque em algum momento, numa das noites em que escrevi a dissertação, uma espécie de biografia do Transa, me senti minúscula, como se estivesse materializada internamente uma sensação que me acompanhava há tempo suficiente, desde o dia em que o castigo foi interrompido para meu pai me mostrar “Jorge Maravilha”; um tipo de coisa difusa que rompia as cascas, quaisquer cascas, e mostrava o núcleo duro, quente e intransponível do que se convencionou chamar de país.
Mais que a literatura, foi pela música que aprendi a reconhecer o Brasil. Os Brasis. Tem algo muito inacreditável que passa pelo som — e o fato de eu ser surda só acentua isso — e me devolve um senso de pertencimento brutal a essa terra — quando digo brutal é brutal mesmo, inescapável, feroz, capaz de dinamitar trocentas mil coisas e refundar outras tantas em um compasso.
Mas isso é a superfície.
Três.
Falei ali em cima sobre meu pai e Chico, certo? Pois bem, esse é meu pai adotivo, brasileiro, segundo marido da minha mãe etc. Meu pai biológico é italiano, e quando eu era criança minha mãe me mostrava músicas em italiano como quem diz olha, você tem um pai, ele fala assim, existe esse outro país. Eu adorava. Até hoje, pelas madrugadas, escuto essas mesmas músicas e nunca consegui conhecer muito as outras, mais recentes, porque a Itália pra mim vive naquelas cinco ou sete canções dos anos 1990, que quando eu era criança me deram outro senso de pertencimento — íntimo, familiar, talvez?
Não consigo ver, portanto, como ironia o fato de que esse mesmo pai italiano foi o grande responsável por me fazer gostar de música brasileira. Precisei sair do Brasil para conhecer o Brasil. Chegava em Roma e no carro, em casa, nos churrascos ou festas familiares, não tinha erro: tudo se refundava pelas mãos daquele enfermeiro que foi parar no Rio de Janeiro no começo dos anos 1990 apaixonado pelo som. Foi com ele que aprendi a gostar de Caetano, por exemplo.
Meu pai e os tambores, o batuque, as repetições de “Haiti” num trailer cruzando a Itália em 2008; meu pai que me mostrou “Jorge Maravilha” mas era das guitarras e do rock e os incontáveis shows a que fomos: o som.
Quatro.
Cheguei em casa do show do Gil e vi um story postado pelo professor e pesquisador Rafael Julião em que ele dizia, sobre o dueto com Chico: “Que milagre a canção brasileira”.
Milagre define, penso. É isso.
Passei as últimas semanas obcecada por Nana Caymmi cantando “Neste mesmo lugar” acompanhada pelo piano de Cesar Camargo Mariano. Gosto de pensar que Caetano ficou igualmente obcecado, tanto que a escolheu para abrir a lista de “Pra ninguém”, do disco Livro. E esse exercício se desdobra: o que na gravação deixou Caetano maluco? Porque pra mim é, desde a primeira audição, o que Nana faz ao cantar “só falta agora a porta se abrir e ele ao lado de outra chegar e por mim passar sem me olhar”. Faltam-me palavras. Penso um milhão de coisas, quero dizer outras tantas, e nenhuma palavra dá conta. Talvez essa newsletter inteira tenha sido escrita porque não sei como reagir diante disso e queria escrever quatro páginas que não dessem voltas, ou então uma linha bem escrita que jamais conseguirei alcançar, para dizer: parem tudo e vão correndo ouvir essa gravação, ou sintam a toda a beleza e a dor do mundo nessa voz, ou, mais importante até, contra tudo e contra todos, puta que pariu, temos um país. E por isso dói.
Duas ou três coisas que o som me ensinou.
Atenção: o lançamento de “Os anos de vidro”, meu novo livro, é neste sábado 7/06, às 16h, na Janela Livraria do Jardim Botânico, no Rio. E é meu aniversário. Vou conversar com a crítica Beatriz Resende, que assina a orelha, e autografar. Apareçam :)
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️