Na próxima quinta-feira, 3/07, lanço Os anos de vidro em São Paulo, na Megafauna do Copan, a partir das 19h. Converso com a escritora Juliana Leite e a jornalista e crítica Gabriela Mayer, depois autografo. Vou adorar te ver por lá, se você estiver por SP!
Mas antes.
Um.
É o mesmo quarto de sempre, porém as coisas estão todas em cima da cama, desordenadas como ainda há pouco estavam desordenadas em cima da mesa, do piano, dentro de um armário, do outro, nas gavetas. Esticadas sobre o lençol, banhadas pela luz amarela que entra com o dia, mal parecem existir. São miragens, escuto de uma voz interior, dependuradas umas sobre as outras na teia que estiquei.
No entanto, ficam.
São minhas coisas — o álbum de figurinhas completo da Copa de sei lá quando, a espada azul de cabo vermelho embainhada no plástico rígido preto, papeis entulhados de desenhos do Superman e de falsos seriados que eu inventava, um brinquedo de criança. É neste último que me detenho. Seguro com a mão direita em gancho e trago para perto e no instante seguinte estou no mesmo quarto sentado no chão com uma cueca folgada e a blusa branca à espera do barulho que agora só me chega como um deslocamento — era assim, virou nada; nada?, penso. Nada. Aperto os botões. Não funciona. Mas o plástico, a memória das cores, as teclas, o baú vermelho erguendo-se, esse Genius misturado com Caça ao Tesouro — tudo isso me é muito caro, muito próprio, retorna.
Viro o brinquedo de cabeça para baixo. A superfície azul me lembra que era na mistura do azul com o branco de cima que eu sentia uma espécie de prazer, como sentia prazer ao ouvir o barulho da colher de pau mexer no fundo da cumbuca cor de creme na casa do meu avô [até hoje, se tomo sorvete de creme, o som é o da colher de pau batendo no fundo da cumbuca].
Está lá o quadrado vermelho. A lingueta que, basta fazer plec, me revelará o tesouro.
Dura um segundo — mas espero.
Puxo o plástico com o polegar e a luz do sol entra pelo topo do baú. Tudo quase dói. Sinto uma vertigem. Sei o que vou encontrar e por isso vem um prazer.
Pego uma das moedas — quantas são? dez? mais, menos?
Sinto o relevo, o rosto de pirata num acobreado que até hoje não se apagou, a tinta do plástico intacta pelos anos dentro do armário; o mesmo não pode ser dito da parte branca, encardida e suja, cheia de poeira, nódoas pretas agarradas aos círculos coloridos.
Tenho seis anos de novo, talvez menos.
Não preciso olhar em volta, saber da cama cheia de coisas, o futuro provável sem armário, mesa, só o piano, nada.
A memória me restitui o quarto.
Dois.
Semana passada fui com P. à Cobasi. Eu nunca tinha ido à Cobasi. Fiquei meio atarantada com a miríade de coisas para cães e gatos, areia disso, filtro daquilo, snack, ração molhada, seca, grama premium, comedouro, bebedouro, flor, planta. Enfim.
Comprei um negócio de botar água cheio de areia — pesado, portanto — e quando cheguei em casa esqueci de pôr junto à ração de Maria Isabel, minha gata. No dia seguinte, quando o fiz, era meio da tarde e a porta estava entreaberta. Por algum motivo, como o apartamento é pequeno, desde que Maria Isabel chegou sua comida e água ficam no meu quarto — é suficientemente distante da cozinha e da caixa de areia, e eu gosto de vê-la descer da cama para comer, quieta, solene.
Pus o tal comedouro pesado cheio de água. Esperei. Nada. Pronto, pensei, acabo de entrar [novamente] para a estatística dos donos de pet que compram mil bugigangas caras redondamente ignoradas pelos reizinhos, mais cientes do que ninguém das próprias necessidades.
Até que algo se move.
Maria Isabel vem vindo da sala com calma, tateando o piso com suas patas felpudas que mais parecem luvas cheias de neve, e estaca diante da porta. Não me mexo. Ela dá mais um passo, outro, e olha para o novo comedouro, de metal, brilhante e cheio de água. O circunda tão distante quanto a cama permite, se afasta mais um pouco, espera. Se aproxima, cheira.
Estou de pé no corredor e sinto vontade de chorar — entro definitivamente na estatística das pessoas que tomam seus pets por filhos e acham que um gato inspecionar o objeto intruso equivale a uma criança de seis anos com o novo brinquedo.
Maria Isabel chega mais perto do inox. Cheira. Olha lá dentro, comunica o seu desprezo e vai embora.
Fico parada no corredor, eu e minha cena há vinte e cinco anos naquele quarto agora cheio de coisas, a possibilidade de essa cena acontecer de forma muito diferente, e ainda assim verdadeira, quando outra criança se apoderar dos objetos, dos intrusos, da casa, enfim.
A memória me traz o futuro.
Maria Isabel diz olá :)
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️
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