Terraleste #62 | Tudo é categórico
Em que chego a Berlim e parto para Colônia; observo algumas pessoas; o xingamento carioca como método – mas não só.
Terraleste #62, Tudo é categórico
Chego a Berlim e penso que as periferias são iguais em qualquer lugar do mundo, o que muda é a tristeza.
Prédios cinzas se empilham no caminho entre o aeroporto e a estação de trem, e quando todo o verde fica para trás, o que existe é uma miríade de grafites, pixos, intervenções que trazem alguma cor a uma paisagem algo industrial, mezzo gótica, os trens vermelho e amarelo chapados contra o anúncio do McDonald's.
Cheguei em Berlim e agradeci uma informação com Grazie.
O trem regional passa por Friedrichstraße, onde F. me disse que era o fervo dos anos 1920. Quando chegamos à estação central, decido comer algo. Penso que é loucura comer uma pizza, ou um McDonald's, ou ainda, um Burger King, e opto por um daqueles bowls asiáticos de arroz, almôndegas, milho e curry. Devia ter ficado no fast food: minha boca é inundada por bolas de fogo, e nem uma garrafa d'água e um punhado de Maltesers dão conta. Agora mesmo, às 19h05, enquanto espero o trem para Colônia, sinto pequenas agulhas destrinchando o céu da boca.
Sobre a cabeça, a abóbada de vidro e os prédios com suas luzes e outdoors.
Anoitece. Um sujeito de colete laranja passa com o carrinho de lixo pela plataforma. Ao meu lado, um senhor de máscara e mãos inchadas tira de um compartimento do andador o Der Tagespiegel desta quinta-feira. Uma manchete no canto inferior esquerdo diz alguma coisa sobre Biden e Putin. Imagino se é possível que o senhor não tenha lido as manchetes durante o dia e só agora, quando o jornal de sexta já está prestes a ser rodado, decide se informar. Penso em Biden. Em Putin. Os mil epicentros que se misturam a todo instante, um avião que sai do Rio e as pessoas que chegam do oriente e pegam também uma conexão em Amsterdam com destino a Berlim, o anonimato de fogo das grandes viagens — quaisquer viagens? —, algo chamuscando por dentro, luzes vermelhas e laranjas cintilando por cima da estação, os ferros abobadados, Em Berlim sempre tem alguém mais malvestido que você, me disse F. enquanto íamos para o casamento da Luli, não se preocupa, e agora lembro disso diante do cara de branco com detalhes pretos, as coisas se empilham, o tecido parece me dizer, tudo se empilha e se transforma na velocidade da luz, uma selfie e acabou o mundo, outra vida, outras pessoas, e lá fora, atrás de mim e ao redor, o barulho dos ônibus que nunca chega, abafado pelo ruído dos trens, velhos, modernos, singrando binários enferrujados.
Tudo aqui parece construção e jamais será ruína, tenho certeza, ainda que a bomba e Biden e Putin.
Escrevo isso e a quatro metros para uma mulher que parece M., a mesma franja de M., os mesmos olhos que, maquiados, parecem repuxar. Mas não é M., que já está de volta ao Brasil. Acho que esteve na Dinamarca. Teria passado pela Alemanha? Não sinto vontade de checar.
A mulher consulta o smartphone, carrega uma bolsa preta e outra rosa, menor; com a mão sem celular, ela agarra frouxamente um buquê de flores embrulhadas. Acho que mastiga um chiclete. É bronzeada. Seu casaco parece leve, o capuz caído atrás dos cabelos aloirados lhe dá um ar de espiã. Somos todos espiões em Berlim — em viagem?
Ao meu lado se senta uma mulher com seu carrinho. Cores azuis, uma manta bege claro: o bebê está coberto por uma roupa felpuda. A mãe, jovem, brinca com ele. O marido caminha pela plataforma. Do meu outro lado senta-se a sogra de um dos dois. Ela cobre os cabelos com um lenço marrom, de adornos discretos.
Escrevo enquanto o bebê me olha. Sorrio. Ele desvia. Emite pequenos grunhidos. Penso em minha mãe, do outro lado do mundo, em ligar para ela e mostrar o bebê, mas também na mulher do avião em Amsterdam, seus quatro filhos, a visão de seu corpo saindo da aeronave com duas bolsas pesadas, uma em cada ombro.
O marido da mulher ao meu lado caminha sobre a linha branca. Tenho a impressão de que ela fala mezz'ora e pergunto se são italianos. Nein, responde, e emite uma palavra que se aproxima do Turkish inglês.
[Curiosamente, não senti muita dificuldade em me guiar pelas placas quando não tinham tradução. A raiz de muitas palavras se assemelha ao inglês. Fico pensando no baque que vai ser quando tiver que me guiar pela cidade, longe de locais que exijam sinalização aos forasteiros.
Fico pensando muito, em muita coisa.]
O baque vem em instantes:
Pego o trem pelo lugar errado; se não me falam, vou parar em Bremen. Aguardo Spandau, onde devo descer e andar trinta metros até a frente da composição. Dois rapazes e uma jovem senhora também esperam. Lá fora as luzes amarelas se esticam contra o veludo da noite.
Tudo parece mais silencioso do que é, ou menos barulhento do que o ideal.
Andar no silêncio, absorver a calma, pisar no vazio.
Tudo é categórico quando a pressa some e você fica sozinho consigo.
O trem chacoalha numa curva. Grito um CARALHO! instintivo. Ninguém move uma sobrancelha. A alegria difusa do carioca em poder xingar sem medo de ser visto como mal educado — a liberdade do palavrão como elemento pedagógico pra aclimatação do turista.
Múltiplos delírios.
Agora são 23h35.
O trem saiu de Berlim às 19h46. Recebo e-mails da companhia ferroviária dizendo que a previsão de chegada é 0h51, estamos 17 minutos atrasados.
No Rio, uma pane no metrô provocou caos. Ninguém sabe até agora o que está acontecendo. Penso que seria bom se recebêssemos e-mails ou mensagens.
Mas nada vem.
Alguns respingos no vidro quando paramos em Dortmund.
Espero não ter que dizer — obrigado, Google Tradutor — der Regen bestraft die Cariocas.
Chego em Colônia com quase uma hora de atraso.
É madrugada e a cidade está mergulhada em silêncio. Ainda não sei que no dia seguinte vou falar na universidade, com Alexandre Vidal Porto, e será incrível; que vão rir durante o conto; que uma estudante vai dizer Você tinha que ler isso num palco.
Tantos mil quilômetros de casa.
Chego em Colônia à uma da manhã, treze graus, e pego o bonde.
Cai uma água fina do céu.
Der Regen bestraft die Cariocas.
Com Alexandre Vidal Porto e Janek Scholz, na Universidade de Colônia.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️