Terraleste #63 | Cenas de outono
Em que saio à noite por Colônia; testemunho o colonialismo no trem; e Frankfurt me autoriza – mas não só.
Terraleste #63, Cenas de outono
À noite, Colônia parece outra cidade.
Não digo isso no sentido do Rio de Janeiro, por exemplo; aqui é como se a luz do dia fosse capaz de ocultar algo que se mantém nítido para quem souber ver. Eu não sabia, precisei esperar a noite cair para perceber a simplicidade.
A noite em Colônia é simples.
C. e eu deixamos o pequeno bar de tapas e cruzamos um parque. Me senti, por um momento, no Rio. Isso aqui é tipo o Bairro Peixoto, eu disse, e C. riu: É o Bairro Peixoto de Colônia, respondeu. Não estava frio, ou ao menos eu não sentia, coberto com três camadas de roupa, de modo que cruzamos o parque e depois uma rua de prédios baixos, lavanderias, farmácias de manipulação. Eu tinha certeza de que pela manhã tudo seria reduzido a uma objetividade planificadora: prédios, casas, parques: não passariam daquilo que eram.
O painel eletrônico entre os trilhos exibe as notícias: Elon Musk, uma nova variante de Ebola em Uganda. Quando entro na composição, que chega após curtos vinte minutos, me dou conta de que finalmente consigo nomear algo que me acompanha desde Roma: os túneis aqui são simples. Tanto na Itália quanto em Colônia, o metrô parece erguido unicamente para conectar pontos da cidade, e não para exibir algum tipo de virtuosismo arquitetônico. Uma oposição violenta às estações altíssimas do Rio, com muitas cores e bilhões torrados.
Não sei ainda o que isso quer dizer, mas conseguir nomear o incômodo pode significar o primeiro passo em direção a um entendimento.
Acho que foi Camila Assad, em seu incrível livro Desterro, que disse: para entender uma cidade é preciso olhar a estrutura dos transportes públicos. Estou citando de cabeça, mas a ideia está ali — saber como as pessoas se movimentam num espaço compartilhado estabelece não apenas hierarquias, mas uma visão ampla sobre o Estado. Não acredito em cidades imóveis, muito menos em obras faraônicas e excludentes.
No trem para Frankfurt.
Sento ao lado de um oficial do exército, uma freira e um sujeito bem vermelho, que me pergunta de onde sou. Brasil, respondo.
— Mas você é branco!
— Sim — digo, sério.
O homem vermelho sorri e passa a mão pelo rosto.
— Mas eu pensei que todos os brasileiros fossem... mocca.
Não respondo. Ele se cala. Minha mente entra em looping, o trem vai devagar pela saída da cidade, estaca numa ponte sobre o Reno, as águas parecendo um lençol, agitadas, e só então se põe em marcha.
No meio do caminho surge um casal bastante jovem. O homem e a freira se levantam e o casal apoia o bercinho do bebê na mesa compartilhada. A mulher é loira, usa óculos de aro fino; o rapaz tem rosto magro, barba, nariz adunco. Fazem um bonito par e carregam consigo um ar de descoberta, como se os anos ainda não lhes tivessem feito mal.
Observo o rosto da criança pelo reflexo no vidro. Cabelos claros, deixando de ser careca. Um menino. Quando entramos no túnel, ele olha fixamente para o outro lado, investigando as três pessoas que conversam na janela. Seu pai mexe no celular. O bebê gruda ali. Na tela. Suas bochechas são grandes, a mãe não tira a boca de sua cabeça, beijando-a para mantê-lo calmo.
Do lado de fora, conforme avançamos, o céu fica cada vez mais cinza.
O casal volta pouco depois que passamos por Dauborn, um bairro do município de Hünfelden, informa o Google. O bebê está no colo do pai. O homem vermelho acabou de pegar suas malas no bagageiro sobre as poltronas. Não me olhou na saída.
No Twitter, uma seguidora responde assim que compartilho a história. Quando estava na Suíça, um sujeito — sempre um homem — lhe disse que lá todas as brasileiras eram prostitutas. L. vai pelo mesmo caminho: na Inglaterra, todos lhe falavam mal dos imigrantes, e o senhorio indiano só falava com ela, que lhe trazia chá e biscoitos assim que ele chegava.
V., por sua vez, me fala da Itália, inclusive de seu ex, e penso que é uma cena comum na minha vida: demorar para que o óbvio se manifeste. Porque é claro que a regra por aqui é essa, testemunhar a ilusão de superioridade do colonialismo, e não a minha experiência em Roma, de ser lido como um italiano ou encontrar alguma benevolência ao falar que sou do Brasil.
Esse pensamento tem um gêmeo perverso: que outros horrores estão acontecendo agora sem que eu me dê conta?
Mas esqueço momentaneamente. Deixo as malas na casa de Alexandre e descemos juntos para passear as cachorras. Zazie e Bisou vão à frente, cheirando a cidade como fossem suas rainhas. No final do quarteirão, ele me aponta um bom lugar para caminhar. Diz que vai voltar e que eu preciso ficar sozinho um pouco, pensando nas coisas óbvias que C. também me falou. Alguns amigos estão na casa, não vou ter a paz necessária, ele explica. E está certo.
Quando retorno, uma hora depois, uma galáxia se abriu no meu peito.
À noite, antes do debate, ficamos conversando por horas no sofá, entre os quadros. Em determinado momento, ele pega o iPad e lê o início de seu novo romance. Deliro. Não vejo a hora de que seja publicado. Depois fazemos uma omelete de espinafre.
Agora, quando escrevo isso, pouco após o meio-dia, as cachorras sobem em mim e me lambem a mão. Do lado de fora faz o frio agradável que precede o congelamento. É outono. O céu de Frankfurt desaba sobre o mundo no azul mais puro, e árvores desfolhadas espetam a paisagem com seus troncos delgados, as pontas chamuscadas de pequenas flores laranja.
É um tempo seco, e ainda assim acolhedor.
Alguma coisa de incontornável se ergue sobre nós, os humanos, e é por isso que me autorizo a ir para a rua, para Frankfurt, ignorando os desejos do mundo ao meu redor e crendo somente naquilo que vibra no meu íntimo [um beijo para Orides]: mesmo com os infinitos horrores dos últimos anos, eu ainda sou brasileiro, e todo o resto do mundo é muito pequeno diante disso.
Uma tarde em Frankfurt.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️