Terraleste #65 | Nara em Alexanderplatz
Uma edição longa para um mergulho profundo — mas não só.
Um.
São 1h59. Lá fora faz oito graus. Chove.
O dia foi bonito como podem ser bonitos os dias azuis, nuvens em véu e dez quilômetros percorridos a pé. Berlim não me fez cair de amores por suas ruas de imediato, mas a miríade de possibilidades é irresistível.
Agora são 2h01 e sinto o chão tremer. O apartamento de M. e F. está no penúltimo andar de um edifício numa esquina de Schöneweide, bairro ligeiramente afastado do centro — nada que um trem não resolva.
O chão treme ante a passagem do gato. Moishele tem quase dez quilos e um pelo sedoso, amarelo e branco. Ainda há pouco estava fuçando minha mochila. O chão treme porque é fino, aqui se fala baixo e o vizinho tem fama de reclamão. Assim como na Itália, não há elevador na maioria dessas construções diminutas.
Passamos a noite com N., uma de minhas cantoras preferidas, que mora em Berlim há oito anos. Ela acabou de se mudar para um apartamento no quarto andar de um edifício alto, e sua sala sem móveis me deu uma paz difícil de explicar. Enquanto os outros conversavam, ouvimos — e cantamos — Piero Piccioni. Ali também o piso era de tacos compridos e parecia bambear a qualquer toque das solas.
Fico me perguntando como seria viver todos os dias pisando com mais gentileza — nos tornaríamos pessoas melhores ou daríamos a volta até ignorar o que é belo?
O que me leva à tarde:
Zanzando com M., passamos pela East Side Gallery, a parte do muro cheia de grafittis e pinturas de diversos artistas. M. viveu em Berlim antes de se mudar de vez com o noivo, há alguns meses, e foi me explicando que lado pertencia a qual regime. Contou uma história lindíssima, sofrida, envolvendo seu vizinho. Bombardeei-a de perguntas e, a certa altura, cruzando um grupo de edifícios obviamente soviéticos, recordei um tweet que vi na noite anterior: um sujeito americano zombava da arquitetura ultrafuncional dos conjuntos habitacionais comunistas, ao que alguém replicava que falta de moradia não era um problema.
Passando pelo bloco de apartamentos homogêneos, me perguntei quanto tempo levaria para me sentir ajustado a uma engrenagem monstruosa. Teria eu o ímpeto de me conformar com a individualidade achatada ou acabaria tentando dar o fora, como as pessoas que pularam o muro quando a East Side Gallery estava coberta de arame farpado?
M. se voltou para o concreto e, com uma nota de pesar, disse:
— O mais triste é que eram os orientais que atiravam no próprio povo, não eram os americanos.
Agora é tarde. Sexta.
Caminho por entre os monolitos do Museu aos Judeus Mortos na Europa, um enorme terreno coberto por milhares de blocos de diferentes tamanhos, atrás do Brandenburg Tor. Lembro de ter visto que havia pessoas subindo aqui e tirando fotos inapropriadas.
Me encosto num bloco; famílias passeiam, um homem ao longe tira selfie, um casal ajeita seu bebê no carrinho. A chuva deixou o piso de lajotas mais acinzentado que o normal. Há limo e cocô de pássaros em cima dos blocos. A três metros de onde estou, uma garotinha muito pálida tira uma foto fazendo V com os dedos, e salta de um bloco a outro sob o olhar do pai, grisalho, que fotografa essa espécie de parkour.
Dois adolescentes, por sua vez, pulam de um bloco a outro. Quando estão quase atingindo os lugares mais altos, o rapaz da limpeza dá um grito. A princípio eles ignoram, ou fingem não ouvir, mas aí o sujeito de colete verde-limão grita mais alto e eles descem. Tiram uma ou duas fotos comemorando não sei o quê; saltam para o chão.
O rapaz se afasta. Num edifício ao norte, a bandeira da União Europeia tremula.
Estou no S9, voltando para Schöneweide. Antes de parar na Warschauer Straße, um trem emparelha à direita, e então ficamos assim, um tríptico: à esquerda, a cidade anoitecendo, com suas luzes, prédios e pontes emolduradas por anúncios de neon do Dunkin’ Donuts pululando rosas; ao centro, nós; à direita, o rapaz negro de casaco preto sentado à janela, me olhando por detrás da máscara enquanto me divido entre seu olhar e a menina à minha frente, ajeitando o cabelo rosa, casaco preto, blusa do Nirvana e calça xadrez amarela: seus olhos estão fixos num ponto atrás do meu crânio, mas quando me volto para trás só enxergo as poltronas recheadas de figuras olhando o celular.
Em seguida, Berlim mergulha na noite.
Após escrever esse último bloco, murmuro mais uma vez “Nanã”, de Moacir Santos. É uma melodia tão linda, e sempre me acalma ou ajuda com a ansiedade. Quando canto, imagino Nara Leão no estúdio pensando como interpretá-la, ainda sem a letra que ficaria famosa — penso na gravação de Wilson Simonal —, e como essas coisas transformam tudo. Uma escolha, um registro histórico: ir para um lado ou para o outro, também não é assim aqui, comigo? Ainda em Roma e ter que decidir entre ficar mais uns dias, e conhecer Berlim, ou voltar para casa após os compromissos de trabalho.
Algo se expande quando duas forças muito grandes se combinam — nos trilhos, no estúdio.
Penso em Nara Leão.
Penso em Moacir Santos.
Dois.
Combino de encontrar B. no sábado à noite.
Devo muita coisa a B. Acho que foi a primeira amizade masculina que reconheci como sendo plenamente possível. Quando ele se mudou para Berlim, em 2014, senti uma distância se abrir em mim. Nos revimos quando ele esteve no Brasil com a esposa e a filha. Que nos encontremos agora — e ele esteja do lado de fora da loja de kebab, me esperando escolher uma comida —, na cidade que elegeu para chamar de sua, só pode me encher de uma alegria mansa, como toda boa alegria deveria ser.
É uma noite curta, porém longa naquilo que contém: o afeto, o carinho.
No total, B. e eu devemos ter caminhado seis quilômetros. Chegamos à Bernauer Straße vindo de Prenzlauer Berg, onde fomos a um bar dos anos 1930, e andamos até a Gartenstraße, para o Memorial do Muro, onde centenas de barras de ferro erguiam-se para pontuar a divisão capitalismo/comunismo. Fiz o exercício silencioso de olhar os prédios através do metal: as frações que alguém passando por ali, décadas antes, enxergaria se adivinhasse o outro lado.
Há um ponto que se transforma no Memorial propriamente dito. O muro está ali, degradado em cinza e chumbo, vigas aparentes corroídas pela chuva. Mais à frente, o antigo cemitério, movido de lugar porque ficava no meio da fronteira: um gramado bem cuidado e uma cruz branca, talvez de madeira, com um metro e meio de altura.
B. começa a entrar e sair do espaço entre as estacas e gargalha enquanto diz Oriental, Ocidental, Oriental, Ocidental. Decido imitá-lo. Me sinto feliz como um adolescente experimentando as possibilidades de ruptura. Oriental, Ocidental. Mais que isso: estar no meio do caminho, à beira de um cemitério movido de lugar.
Os corpos nunca ficam onde deveriam permanecer; precisam estar sempre mudando. E o meio do caminho é a liberdade.
Três.
— Vem, vou te mostrar o meu supermercado favorito.
Era isso que eu precisava —madrugada, meu amigo me mostrando o supermercado preferido: há nada melhor ou mais importante do que explorar uma cidade à noite.
Antigamente, B. prossegue, tinha vários mercados municipais. Tipo uma Cobal, arrisco. É, ele diz. Um deles virou um Rewe, que é a maior rede de supermercados da Alemanha, tá no país inteiro, mas manteve a arquitetura. E ele em si é meio diferente, você vai ver.
Agora pense num mercadão do início do século XX, finalzinho do século XIX. Enxergue lá dentro as luzes, as gôndolas cor de âmbar, o piso debaixo dos tijolinhos vermelhos, o rejunte bege, tudo bonitinho. Ackerhalle, está escrito no meio. Markthalle VI, está acima. B. explica que aquele é o mercadão de número seis. Era. Agora é um Rewe.
1h27. De volta à estação de Prenzlauer Alle, depois de tomar o bonde em Alexanderplatz e ver a torre, escondida por grumos de luz vermelha — a guerra da Ucrânia forçou a diminuição da energia elétrica por toda a Alemanha; para ver a torre em sua plenitude, só chegando perto.
B. já foi e espero o trem para Schöneweide. Passa um daqueles de carga. Se demora longos segundos arrastando um vagão após o outro, quase todos cilíndricos. Por um segundo me vejo de novo em Roma, na estação de Trastevere, só que num banco mais confortável, e com mais frio — se bem que hoje não venta tanto e consigo deixar o casaco aberto, macacão à mostra. Penso em como a dupla ida à Europa se refaz em círculos, ir e vir; tudo se mistura quando não é abismo, ao contrário, as pontes que se erguem são as pontes que salvam — do absurdo, da cegueira, do nó.
Quatro.
Domingo, começo de tarde. Vamos ao Treptower Park, e sua beleza quase me desconcerta. O chão é forrado de folhas amarelas, as árvores altas se dobram formando um teto, o sol absorve o frio.
No monumento aos soldados soviéticos, a perplexidade aumenta. Sete mil mortos jazem em dezesseis urnas gigantes, cujos lados exibem frases de líderes comunistas e esculturas de momentos cruciais da Mãe Rússia. Dois arcos invertidos sobem num platô gigante. Ao fundo, um soldado de bronze segura uma criança e, empunhando sua espada, corta uma suástica.
Ladeando tudo isso, um belo pomar de ciprestes e bordos.
Vamos a Prenzlauer Alle. À luz do dia tudo parece anêmico, sem a força da noite e da presença de B.: contornos frágeis, margens dissolvidas, sobreposições injustas. Pegamos o tram e depois caminhamos até um restaurante georgiano. Famílias comem falando baixo, o cheiro de pão quente é uma delícia. Na saída, antes de retornar a Schöneweide, paramos para tomar sorvete.
M. lambe sua casquinha e conta que Prenzlauer Berg é o bairro com a maior taxa de natalidade de Berlim. As pessoas se mudam pra cá, diz, e têm filho em, no máximo, um ano e meio.
Olho para a frente. Um grupo de amigos ocupa uma mesa de ferro preto: carrinhos de bebê lado a lado, crianças loiras dando gritos, uma paz obtusa e visceral.
Domingo é domingo em qualquer lugar do mundo.
Mas é engraçado como as coisas se empilham.
Ao lado da sorveteria há uma agência imobiliária. Vamos olhar os anúncios. Dois mil e novecentos euros mensais por um apartamento aqui na região, F. exclama. Mais quinhentos, quase seiscentos, de custos adicionais.
Adiante há uma escola judaica, linda. A margem da rua em frente está bloqueada por cilindros de concreto. M. explica que é para evitar atentados terroristas. Na esquina, no último andar de um edifício branco, uma janela ostenta a bandeira da OTAN.
Rimos de nervoso.
Tristeza é tristeza em qualquer lugar do mundo.
Cinco.
Vim à Alemanha a trabalho, a Universidade de Colônia e o Consulado Brasileiro em Frankfurt me convidaram para falar do meu livro, da minha escrita, e saí com uma galáxia aberta no peito; descobri Berlim como um cirurgião analisando o tecido dos órgãos após abrir um paciente a fórceps; aceitei que minha casa é qualquer lugar com livros e trilhos, um bonde, um trem, ruas, prédios, calçadas: testemunhar como fomos capazes de domar a noite e de afirmarmos nossa existência — quando estamos tão próximos do infinito lá fora — me parece a coisa mais importante para se entender como indivíduo.
Amar as cidades como amar a si mesmo, ainda que seus portões pareçam uma caixa de fósforos, que o segredo esteja na luz de um bar da década de trinta ou numa poltrona da seção inglesa de uma livraria colossal, num amigo que te toca no mesmo ponto que há dez anos, só que mais forte, aquilo adormecido que ninguém tira, dois adolescentes já bem longe dos vinte anos correndo pelas margens, Ocidental, Oriental, aos risos, sozinhos, sem medo de ser feliz.
Penso uma última vez em Nara Leão. Em Berlim.
Algo se expande quando duas forças muito grandes se combinam — nos trilhos, no estúdio. E se uma vida é uma força tão grande, também eu me expando quando me combino à Alemanha — Colônia, Frankfurt, Berlim, mas também cada rua, estação, bonde, trem, loja, livraria — tudo que vivi nos últimos dez dias.
A totalidade da beleza é sempre a mais nítida das medidas.
Nara cantando Moacir Santos, será que ela esteve em Berlim?, um corpo se abrindo como um buraco negro para tudo que precisava ter entrado em contato — com a pele, com um tipo muito único de pertencimento.
A última coisa que eu vim fazer aqui foi ler meus livros. Mas só por isso é que me encontrei. Berlim como veículo. Roma como início. A cidade é o ponto de convergência dos corpos — o seu corpo.
Penso em James Joyce: “Think you're escaping and run into yourself. Longest way round is the shortest way home”.
Estar longe de casa é o caminho mais curto para se encontrar.
Hora de voltar.
Foto de B., na Ilha dos Museus, de madrugada.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️