Terraleste #66 | Guá
Em que pouso no Rio; acordo cedo; reflito timidamente sobre a decadência e enxergo um morango – mas não só.
Terraleste #66, Guá
Começo a escrever no avião, a poucos minutos de pousar no Rio
Estou ouvindo “Guá”, do Caetano, do disco Joia, e apesar das quase trinta horas de viagem, tudo parece calmo. Saí de Berlim, peguei o trem até Frankfurt, de lá para o aeroporto, cinco horas esperando, duas horas até Amsterdam, cinco horas esperando, e agora onze horas e uns quebrados até o Rio.
Decido que esta newsletter vai se chamar Guá nos primeiros ataques da percussão. Uma música singela, linda, que coroa dez dias de uma singeleza aguda, cujas arestas não cortam, mas avisam da presença: é cada vez mais preciso tomar cuidado com o que está ao redor. O corpo como limite, muito mais que fronteira, que significa transposição, mesmo virtualmente; limite, não.
Acho que essa viagem terminou de terraplanar as fronteiras dinamitadas em 2015, quando fui a Roma pela primeira vez após oito anos. Era ali um quase adulto prestes a confrontar o que havia se erguido do outro lado — um irmão bebê somando-se a dois irmãos adolescentes e um pai.
Agora, quando estive em Roma, passei a maior parte do tempo sozinho. Não era mais férias, o verão estava acabando — eu disse a minha analista que fiquei três semanas numa solitária a céu aberto, e não acho que a imagem seja forte de modo negativo; antes, atesta uma capacidade. Na época em que o mundo mais exige demonstrações de força e habilidades esdrúxulas, passar muito tempo consigo não pode de maneira nenhuma ser visto com condescendência. É uma capacidade de linguagem: elaborar o discurso, fuçar no escuro os organismos que fogem pras suas cavernas.
Gosto de fuçar.
[Esportes preferidos: arqueologia sentimental.]
É a terceira vez que repito “Guá”. Sinto vontade de chorar no final, quando a voz feminina retorna junto com Caetano. Sempre sinto vontade de chorar nas sobreposições de vozes. Algo com os contrastes.
Talvez por isso, em outra chave, me incomode com fotos coloridas. Informação demais atrapalha. Prefiro as formas, os pontos de luz, muito mais que a objetividade das cores constituindo-se um óbvio desnecessário. Objetividade demais atrapalha.
É preciso deixar espaço para o delírio — mas não demais, senão atrapalha o carnaval.
O segredo é a medida.
O avião parece que está parado, no entanto desaba — controlado. O sujeito ao meu lado tem nariz grande, corpo macilento, e carrega um livro do Jonathan Safran Foer em holandês. Estamos no fundo da aeronave. Furamos nuvens. A luz da asa pisca — branca, difusa — e joga luz sobre o que parece leite na noite; mas é água. Flutuando.
A cidade finalmente aparece, coberta de tons pálidos, grãos de areia luminosa no veludo. Eu reconheceria esse cenário a dez galáxias de distância.
A luz das favelas é intermitente. No alto de alguns morros, quadras de futebol vazias. Luzes vermelhas piscam aqui e ali. Enxergo carros parados no sinal, a ponte perto do Fundão, fluindo, os terrenos baldios, a luz dos postes sobre a Baía de Guanabara, quando as rodas tocam o solo.
E em um minuto:
— Dear passengers, welcome to Rio.
Welcome to Rio, penso enquanto o Uber diminui a velocidade.
Estamos no final do túnel Santa Bárbara. As janelas estão abertas e o ar quente me envolve o pescoço. Andamos devagar. Uma blitz. Na saída, o motorista acelera e um frescor me invade.
O Rio.
Antes da pandemia, A. me fez gostar de acordar cedo, ou ao menos enxergar algum valor nisso. Eu pedalava, jogava tennis e via a cidade dar a partida na sua imensa engrenagem de forma mais ou menos natural. Desconfio ter sido a primeira vez, desde a época da escola, que acordei cedo com regularidade.
Com a sucessão de horrores que foi o começo de 2020, abandonei tudo. A chegada da pandemia me atirou num modo de sobrevivência tal que o importante era estar vivo, sem ligar muito pra exatamente como.
Digo isso porque desde o retorno de Roma tenho nutrido certa simpatia por acordar cedo. Hoje, por exemplo, levantei às 7h30. Ou melhor, fui levantado. Aos poucos, uma superfície úmida e dura tocava meu rosto, e não demorou para abrir os olhos e reconhecer Maria Isabel me distribuindo cabeçadas em protesto e agradecimento por eu estar de volta.
Enquanto escrevo, olho no relógio. São 0h07 e um sono voraz se apodera de mim. Maria Isabel está na minha perna, mas minutos antes estava caçando um mosquito, agitadíssima.
Quando eu acordar, às 9h30, ela vai pedir comida e vou terminar a conversa com G. sobre os bairros do Rio, na qual manifestarei meu apreço pelo Humaitá, embora me sinta impossibilitado de viver ali — para mim, existir na cidade passa pelo filtro do flâneur, e um bairro precisa ter consistência. O Humaitá é bonitinho demais, falta uma aura caótica que só encontro de forma apropriada a partir de Botafogo, em direção ao Centro, quando a decadência da zona sul vai-se fazendo cada vez mais sentida, e na Glória tudo parece mergulhar numa poça de sombras.
Acho que isso tem a ver com uma tentativa de reconhecer os signos.
Agora, por exemplo, escrevo no metrô. Fui ao médico, postei um livro no correio para M., desci à plataforma do Largo do Machado e, diante da listra cor de rosa do vagão das mulheres, um único morango me olhava.
Um morango. Solitário. Na plataforma suja do metrô.
De modo que pouco me importa o pescador solitário no Jardim de Alah, vinte minutos depois, ou as nuvens que encobrem o morro Dois Irmãos e fazem a Ataulfo de Paiva lembrar uma cidade fantasma, quando o sinal fecha e não há um carro no asfalto.
Para mim, tudo está dito naquele morango.
Água, Guamá, Iguape, Ibualama.
Louise Bourgeois, no Gropius-Bau.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Se não curtiu, também me diga. É sempre bom saber como melhorar.
Beijos e até a próxima ❤️