Terraleste #67 | A tempestade
Resumo de um fim de semana às vésperas de Lula; e só — porque é muito.
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Sexta-feira, na Lagoa.
O ônibus passa jogando água para os lados. Estou sentada na janela e vejo como um líquido turvo é atirado na direção das outras pistas. Estamos a uns cem metros do Corte Cantagalo e lá fora faz sol, uma brasa morna que cozinha a gente por dentro.
Mas também bate uma ventania. Me sinto no mar.
Um mar de asfalto.
Sábado vou à praia.
Um calor abissal, minha pele transpira uma gosma borrachuda. Desço na Nossa Senhora da Paz, sigo até o Posto 9. Não está tão cheio. Pelas ruas, pessoas usam a blusa do Flamengo.
Decido caminhar à beira d'água. O mar crepita ondas grandes, a cor não está boa, M. disse por mensagem, não quero te induzir ao erro. Não induziu. A espuma molha meus pés e vou até o Jardim de Alah, onde há uma duna colossal e enormes espaços entre as pessoas, as cadeiras, as barracas.
Fico imaginando que agora, anos antes, eu teria sentido uma vontade incontrolável de entrar no mar e, da areia, conversando com os amigos, meu pai me incentivaria.
Subo pela Visconde de Pirajá e entro na Travessa, os pés salpicados de areia. Torço para que não briguem. Dou uma olhada nos livros, volto à rua, pego um ônibus, desço na General Osório. No Posto 8, na Barraca da Fátima, a própria Fátima é quem me recebe. Sinto uma alegria imensa — pouco antes da pandemia, seus filhos me disseram que ela tinha se aposentado.
— Você voltou — exclamo, com um sorriso.
Ela diz que sim, e isso é tudo — e basta. Pergunta como estão as coisas lá em casa, fico feliz por ter tido a certeza de que ela não se esqueceria dos meus pais, sobretudo F., que me levava à praia com seus amigos, horas e horas conversando sobre filmes e música, as primeiras noções de política, os mergulhos na água.
Tudo aqui, debaixo da Fátima.
Começo a ler Shakespeare, A tempestade, como quem reconhece um terreno antigo, mil vezes já pisado, ainda que esta seja a primeira. Ante a leitura do nome Sycorax, vibro. Alguns livros — alguns autores — me fazem tremer diante de uma velha novidade. Ou de uma novidade tão grande que só pode ser conhecida.
Algo que me diz: então é isso.
[Foi assim com James Joyce, foi assim com Raymond Chandler, foi assim com Albert Camus.]
Agora o céu cai. De frente para o morro Dois Irmãos, adivinho uma luz tímida, laranja bege, nuvens impressionistas boiando no ar.
As águas arrebentam. À minha frente há uma pequena orla ressecada, uma cadeira de praia sozinha guardando os cocos e folhas, restos de garrafas.
Quando estouram, as ondas parecem dançar. A espuma dá um rodopio e o tempo para — não se escuta nem mesmo os uivos da torcida flamenguista diante do gol, os batuques nos isopores.
Um vendedor de amendoim se aproxima. Claramente gay, bonito. Regata e short preto. Sorri.
— Nem precisa de compromisso, só prova — diz e me estende um punhado.
Provo.
— Bom pra caralho — digo.
Ele volta.
— Vou fazer de sete por cinco pra tu.
— Hoje não.
— Um amendoinzinho, vai.
— Agora não dá.
— Por quatro. Quatro e fim de papo.
— Não tenho.
— Tu não tem quatro reais?
Nego, sorrindo.
Tocamos os punhos.
— Então tá — ele diz, e se afasta.
Já faz vinte minutos e o gosto de amendoim continua no fundo da boca.
O Flamengo ganha a Libertadores.
Carla Zambelli saca uma arma de fogo, em São Paulo.
Me sinto invadido por um torpor. Lembro da final de 2008, saindo do Maracanã aos prantos, penso no que São Paulo vai escolher para si nestas eleições.
À noite, vou com G. e R. para uma festa no Centro. A mesma coisa de sempre, uns techno de esquerda, heterotops do bem, G. e eu falando barbaridades inocentes e ajustando esse início de amizade. Gosto que temos o mesmo senso de humor, isso é importante. Quando ri, ela abre a boca e mostra os dentes brancos, inclinando a cabeça pra trás. Está a fim de um rapaz e ficamos pensando em formas de chegar nele. Não rola, mas garante as risadas.
Quando chego em casa, Maria Isabel mia em protesto e torna a desaparecer entre as estantes.
Já é domingo. É o dia.
São 20h09.
Lula eleito.
Minha avó me liga, chorando.
— A vida vai ser melhor pra você e pra todo mundo.
Que assim seja.
Saio de casa para encontrar P. e uma senhora passa gritando na rua, em frente à banca, Tá na hora do Jair, tá na hora do Jair já ir embora!, enquanto faz o L com os dedos.
Danço na calçada.
Celebramos.
Muitos abraços, muito carinho. Um bloco de carnaval pelas ruas do Centro, o lugar mais bonito do mundo.
Agora, quando acordo, uma estranha paz me invade. Lembro que em 2018 eu estava na casa da minha avó, no quarto, e disse que sairia do país. Que não haveria possibilidade de vida. Parecia um túnel longo e escuro, ao contrário da trilha acidentada, mas clara, que se ergue agora.
Como uma onda dando um rodopio diante da areia. O sol detrás das montanhas.
Ainda existe a sombra, mas ela não tem forças para travar a passagem da luz.
Saio na rua de camisa do Brasil — azul, da seleção de vôlei dos anos oitenta —, adesivo do Lula colado ao tecido. Na calçada, no mercado, as pessoas existem como se o apocalipse não tivesse quase existido; como se agora, num universo paralelo, não estivéssemos mergulhados nas mais profundas trevas.
Lá em cima, o céu está escuro. Daqui a uma hora, uma água grossa, em pequenas rajadas, vai cair lavando os últimos quatro anos. Um recado bonito que fará as pessoas correrem e o bar ao lado, cheio de adesivos bolsonaristas no balcão, esvaziar. Mas não me iludo. Eles ainda estão aí, cínicos, desenvergonhados, à solta.
Também por isso cai a água. Para que não se esqueça.
Existe algo a ser lavado.
Mas hoje, quanto ao futuro: vencemos.
E o Brasil é o maior país do mundo.
A maior cidade do universo.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️