Terraleste #68 | Franz Ferdinand
Em que F. me conta do seu casamento e penso sobre o amor – mas não só.
Começo de tarde, dia dos mortos.
Estou na minha avó, almoçando, nossos olhares se cruzam.
— Você sabe que dia é hoje, não é?
— Dia dos mortos.
— Isso — ela diz, numa confirmação meio triste.
Fiquei tentando escrever algo sobre — talvez — minha tia-avó, sua irmã, publicar aqui o texto que escrevi no Instagram quando fez seis meses de sua partida, um texto bonito, acho, mas ao mesmo tempo não me parecia justo. Talvez só deixar ir. Como tudo.
Até que no meio da tarde, mais pro final, F. me mandou uma mensagem.
Primeiro, um trecho do Victor. Uma crônica sobre o amor. Lembrei de você, ela disse, referindo-se a esta newsletter; ao que venho botando em prática aqui. Um calor percorreu minhas costas como uma pedra quicando na água morna de um lago. O amor como arrepio.
Quando conheci F., em 2020, o que existia era um mundo colapsado e alguma esperança. Que não tenhamos dado certo me alivia em algum nível, porque aí podemos ser amigos. E eu gosto dessa coisa de ser amigo das pessoas com quem já tive alguma relação amorosa.
Cresci numa família que passou um dia das mães com minha avó, minha mãe, meu pai e meu padrasto à mesa da sala. Somos civilizados, repetia-se. Essa busca pela civilização, qualquer uma que fosse, o que tem lá seus riscos, sempre me fascinou. Acho realmente possível manter por perto as pessoas incríveis, ainda que de outras formas.
Por isso fico comovido quando F. me manda as fotos do seu casamento — Eu casei, te falei? Respondi que sabia que estavam morando juntos. Casou oficialmente?
— Oficialmente — ela disse, e enviou duas fotos. Na primeira, está com o rapaz, bonito, numa felicidade genuína e um vestido branco com umas transparências na altura do ombro. O cabelo está diferente, mas não tanto. Na segunda, sozinha, segura um buquê de girassóis. O centro de um deles é tão escuro que parece projetar a luz à sua volta.
F. teoriza sobre. Diz que amor e paz são coisas que fogem muito à sua narrativa. À de todos nós, respondo, acho que demora. E continuo: para muitas amigas, o amor sempre foi um arquiduque andando em carro aberto, prestes a tomar um tiro.
F. me conta que não pensou no compromisso. Ao contrário de nossas intermináveis conversas, simplesmente aceitou se comprometer, e viu alguém comprometido consigo, o que não deixa de ser uma sorte, palavras suas.
Essa sequência de mensagens me anima de um jeito esquisito. Há aqui um triunfo da realidade que supera a pandemia, as eleições — como você tá? Na era Lula? Melhor impossível —, o Brasil e o mundo. É como se ela fosse por si mesma o girassol da foto, e concentrasse em si a própria luz da sua existência. Como se não precisasse ficar buscando. Quer dizer, porque tem gente que busca. Eu mesmo, durante algum tempo, achei que, para amar, o segredo era dar um jeito de dobrar o espaço, curvar os gestos até que fossem capazes de se encaixar numa narrativa do desejo.
Conversando com uma amiga, ela me disse que não tinha mais vontade de se relacionar, ou algo parecido. Estava bem sozinha. Sequer sentia desejo.
Eu queria ser assim, pensei. Abolir esse desejo sentimental e passar o resto da vida enfurnado nos livros. Me exilar de todas as vontades, como se cruzar com as pessoas nessa cidade – por Deus, essa cidade – não fosse um atestado de que é impossível não se abalar com as oportunidades.
Mas F. não mora aqui, está muito longe, e quando estive em sua cidade me senti um alienígena. Uma ausência de sal no oxigênio, que, no entanto, faz com que as pessoas insistam. Como se o mundo dissesse Olha, nada é dado, ao contrário daí, do Rio, cujo mar e montanhas e beleza e horror são tão próximos que eu sinto uma espécie de desespero por antecipação. Sei que vou sair à rua e me sentir estimulado. Que as coisas nunca vão se dissipar; a realidade bruta — os corpos, um certo jeito de ser que não te dá muita oportunidade de parar e pensar É tudo isso mesmo ou estou sendo vítima de uma hiperestimulação?
Mas, antes disso, F. me manda um microconto do Rimbaud.
O que andei revirando hoje, diz.
Termino de ler o livro de uma amiga querida. No último mês ela foi responsável por me fazer tomar uma decisão drástica, ou melhor, enxergar o que estava à minha frente. No entanto, seu livro me desnorteia. Foi a coisa mais maluca que li em muito tempo, e é bom. Tem algo que te pega e não larga. Que te obriga a ir no fundo, a olhar pelas fechaduras, intuir o sagrado. Sinto um medo íntimo, por ela. Gosto de gente que toma decisões arriscadas. Gosto de artes que implodem enquanto se disfarçam de simples. É preciso acabar com o simples pelo simples.
Daí penso em F.
Talvez seja isso o que ela tenha feito. Acabar com a simplicidade pura.
Para encontrar um amor, para se casar nesse mundo, nessa vida, desconfio que seja preciso dinamitar as formas e os conteúdos. Esperar por um modelo é esperar pelo encaixe, e provavelmente é isso, a necessidade de uma acoplagem, que acaba por sequestrar as aventuras.
O amor como a aventura. O amor como safári – todos os animais que não somos porque nascemos outros. Wild life, what ever happened to?, me grita Sir Paul.
— Vou dormir — F. diz. — Tirar um cochilo do feriado.
— Vai lá.
— Falamos?
— Claro.
No fundo, escreveu o Victor, é uma questão de educação sentimental: ao divulgar o que se ama, ao afirmar mais do que negar, as ideias circulam livres e podem chegar mais fundo [...] Faça uma lista das coisas que ama e conte para os demais. Plante uma árvore. Vá morar num sítio. Afirme. Nisso, os hippies tinham razão.
E eu, aqui, com saudade do sorriso e do carinho, da ternura dele, pensando em F. e em “See Emily play”, do Pink Floyd, completo: put on a gown that touches the ground e arrume um buquê bem bonito, olhe para o canto da cama, veja sua gata dormir enrolada em si mesma, sinta uma vontade incontrolável de sair para o mundo, e abrace essa vontade, essa vida.
É provável que, ao fim e ao cabo, se você reparar bem, o arquiduque estará bem longe, respirando, e ao menos por algum tempo, quando tudo resistir, o mundo terá enfim sobrevivido.
Maria Isabel só quer que eu saia logo do banho.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️