Terraleste #69, Meu avô
Meu avô vai morrer.
Há algumas horas, meu pai me enviou uma mensagem no WhatsApp falando que ele está no hospital em estado irreversível.
Meu avô vai morrer e é questão de horas, dias?, até que chegue uma mensagem e eu nunca mais volte a Ponte di Nona, cruzando Roma pelo anel viário até o edifício perto do shopping, o chão amarelado, as plantas no corredor atrás da porta de vidro da pequena varanda, de onde se enfia a chave na porta de madeira e então descortina-se o apartamento pequeno, lotado de objetos, porta-retratos e quinquilharias.
Quando eu chegar a Roma, ele terá sido desmobiliado e as próximas pessoas que ali viverem talvez não saibam que eu saí do Brasil algumas vezes e fui até lá, sentei à mesa com meu avô, observei a cama onde dormia, vi seu sorriso, tirei fotos, esperei meu pai fumar um cigarro na varanda propriamente dita, o calor abafado de agosto/setembro/outubro lambendo nossa cara, meu avô me dando um livro grosso e antigo com os poemas de Trilussa, meu pensamento agora, mês passado, nos quadrinhos do Tex espalhados pelas prateleiras.
Há alguns meses, ele quase morreu. Umas pedras no fígado levaram a uma septicemia. Talvez seja uma coisa de família: quando nasci, uma septicemia quase me matou. No entanto, estou aqui. Escrevo. E penso nele, meu avô. Imagino o hospital em que está, se é tão diferente dos outros hospitais do mundo, se tem o mesmo cheiro do Gemelli, onde meu pai trabalha — será que ele está no Gemelli? —, se lá o tempo passa mais devagar, se todos os hospitais do mundo se parecem porque a tristeza é parecida, no final, aquela sensação agridoce.
Algumas vezes tive um pensamento: as paredes dos corredores de um hospital não servem aos doentes, mas a quem os acompanha. Só existem para impedir que as pessoas caiam. Desabem. E não falo aqui de um conjunto de cadeiras para que uma jovem no final de seus vinte e poucos anos se sente às quatro da manhã e chore o mundo, sozinha, enquanto espera um leito para sua tia; é algo mais profundo. Mais denso. Duro.
“Quando meu pai morreu, eu gritei tanto”, ouvi uma pessoa me dizer. Ou algo muito próximo disso. Lembro de ter sentido um ímpeto de olhar as paredes. “Eu fiquei maluca”, essa pessoa me disse. E eu sigo pensando nas paredes. Seu corpo indo de um lado para o outro. Um tom de verde-água segurando-a.
Meu avô vai morrer e eu não vou ao enterro. Não vou abraçar meus irmãos, me dar conta de que estamos todos nós, os quatro, perdendo vinte e cinco por cento de quem somos.
Sei o que é perder alguém. Sei o que é ver quem a gente ama perder alguém.
Mas será que é tudo isso um drama? Que estou sendo injusto?
Meu avô está sentado à mesa. Meu pai limpa seu ouvido. Ele me diz coisas que não entendo, e enquanto meu pai não traduz, penso em 2005, nós dois no quintal de casa, eu reclamando, ele, meu avô, me dando conselhos.
Eu tinha dez anos. Havíamos nos encontrado pela primeira vez alguns dias antes, quando cheguei a Roma no começo de janeiro e me receberam com uma faixa: BEM-VINDO, MATEUS. Lá estava ele. Meu pai se aproximou e disse:
— Esse é o seu avô. Ele é o pirata.
De fato. Óculos, bengala, bigode branco, calvo. Dirigia um carro asiático minúsculo, tomava conta de um conjunto de prédios, nos levou para jantar.
E naquele dia, no quintal, me ouviu atentamente.
— Você entende? — indaguei, em um português tímido, com medo, e ele disse que sim. Que entendia. E me acalmou. Foi sempre desse jeito.
Estive lá há pouco mais de um mês. Falei em italiano. Expliquei algumas coisas. Disse do livro, dos livros, da minha vida no Brasil.
Queria que ele tivesse vindo. Uma cena, um delírio curiosíssimo: meu avô em Copacabana.
Minha mãe ficou empolgada. Contou mais uma vez as histórias das comidas fabulosas que ele fazia. Ele pediu que eu voltasse antes de ir embora. Combinei com minha mãe que tentaria fazer uma chamada de vídeo, para que se vissem após tantos anos – mais de vinte.
Não deu tempo.
O dia estava chuvoso, meu pai tinha que levar meu irmão ao futebol e acabou indo lá sozinho.
Manda um beijo, pedi, e foi quase isso que eu disse hoje, quando soube da notícia e pedi para, se fosse possível, dizer a ele que o amava muito.
Eu só queria dizer ao meu avô que ele estava ótimo quando nos vimos. Idoso, sim, mas e daí?
Ainda era o mesmo cara na imagem da parede, de terno, gravata e um ar triunfante, numa foto tirada nos anos noventa.
E isso ninguém apagaria.
Meu avô vai morrer.
Mas antes disso vou terminar esse texto e deixar claro que sempre, sempre trarei de Roma seu beijo para minha avó e minha mãe.
Que meu irmão vai saber de coisas que talvez não façam sentido, fabulosas, mas que têm uma beleza.
Que eu nunca mais vou ver uma garrafa de vidro com um barco de madeira dentro sem pensar que há muitas garrafas vidro com barcos de madeira dentro espalhadas por aí, que ele espalhou, e que uma delas lhe deu o terceiro lugar num campeonato de enfiar barcos de madeira dentro de garrafas de vidro.
Que eu queria ter aprendido italiano antes, para ouvir as histórias.
Que a vida é assim mesmo, e quando uma pessoa morre ficam todas as coisas que ela fez, todas as pessoas que ela criou e botou no mundo, injetando um ar de sobrevivência no pós-guerra que me atravessa, as tentativas de existir numa época em que talvez isso fosse a última das preocupações.
Mas meu pai entendeu. E eu entendi. Acho que meus irmãos também.
Hoje é sexta-feira em Roma.
Meu avô não vai morrer.
Ugo Baldi nos deixou no último sábado, amor por todos os lados. Luz.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️
Perdi meu avó há quase um mês. Ler esse texto me fez lembrar dele e de tudo aquilo que vivemos - e deixamos de viver. Saudades!!
Obrigada pelo texto.
Sinto muito pela sua perda. Me senti comovida com seu texto. <3