Terraleste #70 | Transgredir
Sobre Gal Costa e o reconhecimento daquilo que nos faz humanos — mas não só.
Perder a Gal deu uma desnorteada por aqui. Não consegui escrever a newsletter de quinta e segunda-feira passadas, e acho que nunca chorei tanto por alguém que não era parente, o que é estranho, porque nos últimos anos ouvir Gal se transformou em algo tão comum quanto respirar.
Aí eu chorava, parava e voltava a chorar.
O primeiro show a que assisti foi o da turnê Estratosférica. Fui com uma ex, que não conhecia muito de Gal, e pirei ao ver “Namorinho de portão” e “Não identificado” ao vivo. Ignorei, porque também não conhecia tanto assim, a sorte e o privilégio de ouvir “Mal secreto”, tantos anos depois do Fa-tal.
Mais tarde, “A pele do futuro” trouxe mais uns sucessos, e reavivou meu sentimento de que a melhor Gal era aquela do início dos anos 1970, segurando a barra do tropicalismo sozinha, nas Dunas, no Tereza Rachel, no corpo; algo muito distante dos álbuns oitentistas, que geravam um ar de saudosismo que ainda não entendi, toda aquela coisa que, ok, é lindo, é Gal, mas não tinha aquela força avassaladora e inquieta. E o que mais me encanta na Gal é a força: só isso explica baixar o tom para “Deus é o amor”, rasgar “Divino, maravilhoso”, produzir minha gravação preferida de rock nacional — “Hotel das estrelas”, no Fa-tal.
Eu tenho uma vontade filha da puta de chorar toda vez que escuto o que ela faz após “essa medalha de prata/ foi presente de uma amiga”, em “Hotel das estrelas”. É um dos triunfos desse país e da humanidade como um todo.
Comovo, salto, mudo, meu olho vermelho de lágrimas — não fico parado, não consigo ficar calado.
Mesmo não sendo tão rapaz assim, e nem tão esforçado, choro.
Hoje choveu.
São nove da noite, Maria Isabel dorme aos meus pés, e me divido entre dois livros. Não sei com qual prosseguir. Nos últimos dias, li seis livros, quase oitocentas páginas. É sempre assim — se algo me atropela, logo me volto pra literatura, devoro livros, saio deste mundo para não admitir que fincar o pé pode ser insuportável; há nada mais castrador que tomar uma decisão, mas ao mesmo tempo nada pode ser tão livre quanto definir alguma coisa — qualquer coisa.
Daí que fujo do paradoxo pela literatura, minha tangente.
Gosto de descobrir a via de escape das pessoas. Aquele momento íntimo, silencioso, quase, em que elas revelam por onde fogem. O que fazer quando tudo parece que vai dar errado?
Da minha parte, tentei lutar contra os livros. Juro. Fiz duas semanas de ioga, há uns anos, e não consegui ficar parado sem surtar. É demais pra você, né, minha psiquiatra disse. Era sim. Ainda é, acho. Morar sozinho me fez curtir lavar louça, trocar roupa de cama, botar roupa pra lavar, mas ficar sentado em um tapete, respirando, saindo de si, não sei, me parece impossível.
É preciso movimento para sair de si.
Escrevendo isso — com medo de estar soando dramática demais —, lembro de uma coisa óbvia: chegar à Urca de bicicleta, descendo rápido a ponte em sincronia com o refrão de “Hotel das estrelas”, costumava ser uma das formas mais eficientes de sair de mim. A visão da cidade, ladeada pelo Cristo, o sol começando a cair, a voz da Gal descendo para a bateria, a guitarra e o baixo entrarem — injeção de adrenalina. Eu estava ali, mas não estava. Nunca estive. Pertencia a outro tipo de registro, mais sutil, mais vibrante — mas isso faz muito tempo.
Novembro de 2021, acho, último show que vi da Gal.
“Hotel das estrelas” foi a segunda ou terceira música, algo assim, e chorei largado. Mais tarde, em “Estrada do sol” — talvez minha música brasileira preferida (junto com a Bachiana nº4), sério, ouçam as gravações do Lúcio Alves e da Elis, são a coisa mais linda —, continuava sem acreditar que fosse possível uma realidade em que aquela mulher, cinquenta anos depois, performava aquilo, na minha frente.
No final do show, graças ao Mauro, que botou pilha para levar o disco, Gal assinou meu LP de Legal. Amo de paixão esse álbum, meu preferido da discografia, dentre os de estúdio. As músicas são perfeitas, o equilíbrio entre vanguarda e establishment é muito bem dosado — pense em “Falsa baiana” e “Eu sou terrível” —, e tem “Língua do P”, que Gil fez no exílio e, bem, escutem o que ela faz com a voz.
Por isso, até o fim não acreditei que tivesse topado reapresentar o Fa-tal, cinquenta anos depois, no Primavera Sound. A hipótese de uma turnê não estava descartada, mas parcelei em três vezes o ingresso. O cancelamento a algumas semanas do show, para a retirada de um nódulo, foi um misto de alívio e confirmação: bom demais pra ser verdade, mas 2023 vem aí.
Sua morte, no entanto, deixa tudo mais claro.
Ter o Fa-tal reencenado após quatro anos de bolsonarismo talvez soasse saudosista demais. Uma coleção de setlist, e não a catarse. Não “Hotel das estrelas” e “Estrada do sol” no mesmo show; uma mulher de quase oitenta anos indo em frente.
Mas e daí?
Gal Costa sabia que capacidade vocal não é nada sem atitude. É preciso bancar o que se é, sob o risco de perder a possibilidade de ser livre em toda e qualquer circunstância — “Quando você se arrisca e transgride é muito sofrimento, mas se é verdadeiro, você acaba tendo liberdade para fazer o que quiser até o final da sua vida. É uma sensação de dever cumprido, sabe?” No fundo, é como se o ato de transgredir trouxesse no bojo a afirmação da humanidade; do saber de si. Ir adiante com seus desejos e sua percepção de si mesmo é ir adiante com aquilo que te faz humano. Gal parece insistir: nada pode ser mais puro que isso. Mais valioso. E, nessa chave, não há nada mais honesto do que uma mulher segurando a onda de todo um movimento ao estender sua canga na praia, batizar um trecho da orla, sair no fim do dia, bronzeada, e entrar no teatro para abrir a boca e deixar que o mundo escute aquilo que tem pra cantar.
Somos o maior país do mundo porque fomos capazes de reconhecer e abraçar uma Gal Costa.
O mundo é melhor porque soube abrigar ela.
Ga-pa-ran-pan-to-po que-pe vo-po-cê-pê, garanto que você não-pão vai-pai, não vai, não-pão vai-pai, não vai com-pom-pre-pre-en-pen-der-per bulhufas, bulhufas, do-po que-pe ten-pen-tan-pan-mo-pos lhe-pe di-pi-zer-per: não tem problema, não tem problema.
Com exatidão na sombra o clarão sem fim.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
Se você curtiu, me escreve. Basta responder este e-mail.
Se não curtiu, também me diga. É sempre bom saber como melhorar.
Beijos e até a próxima ❤️
😭❤️🥰
Que texto lindo! Até coloquei “hotel das estrelas” pra acompanhar.