Terraleste #72 | Ontologia do disfarce
Em que não vejo os cabelos da minha amiga e me é devolvida a lente da realidade — mas não só.
Voltei a andar de bicicleta, o ortopedista liberou e o rapaz da oficina me devolveu ela limpa, freios trocados, me sinto pronto, pensei, e subi até o Cosme Velho, indo pela ciclovia junto à pista, carros descendo a rua das Laranjeiras, a paisagem da minha adolescência, o céu do Rio cor de chumbo no fim do dia, miríades de esquerdomachos — acho — buscando os filhos na escola, as mães estão muito ocupadas trabalhando, fazendo o jantar, existindo longe dos homens e suas filhas, penso enquanto a caixinha de som sussurra Gal no meu ouvido, junto da mochila.
Passo pelo Largo do Machado no cair da tarde, nascer da noite. Sobre os paralelepípedos antes da Marquês, penso na minha avó dizendo Antigamente as ruas eram assim. E antigamente, quando eu era criança, minha avó me levava para sair quase todo fim de semana — foi assim que assisti a A fuga das galinhas nove vezes e meia no cinema, Concita e Yoko no salão, depois o shopping, sempre a mesma rotina —, e invariavelmente, ao passarmos pelo Largo do Machado, ela dizia uma variação de Nos meus dias de juventude as ruas eram mais primitivas, faziam barulho, deixavam marcas acústicas de que estavam ali, a cidade era inalienável.
Havia também a Sessão Passatempo, e isso eu pus num dos contos de Formigas no paraíso. Nos últimos tempos, tenho ido à Cinelândia para tocar no piano do Centro Cultural da Caixa, agora abrigado nos fundos do antigo Teatro Riachuelo, que por sua vez era o antigo Cine Palácio. Ontem fui à Galeria Condor. O antigo cinema — é tudo antigo por aqui — virou uma igreja, e uma notícia de 2019 diz que os evangélicos e a Smart Fit estavam negociando.
No futuro, todo mundo vai se esquecer de que a imagem importa.
Não que hoje seja importante.
Estamos presenciando o último poético círculo da alegria de ver, parafraseando Rubem Fonseca. Penso nisso agora, mas depois de dizer à minha analista, por duas sessões seguidas, que vejo muito e enxergo pouco. Não tem a ver com miopia.
Minha melhor amiga tem os cabelos amarelos, eu disse, mas não consigo vê-la como loira.
Mostrei a foto, minha analista riu. Fiquei desesperado. Quer dizer, é óbvio que ela é loira, mas: e se de fato existir uma dificuldade de tradução entre o que é o mundo e o que eu vejo?
Há uma rachadura no meu corpo todo, penso. Estou há dois anos disfarçando que já não me ancoro numa margem, que boio no meio do rio, e isso faz total sentido com o fato de que coisas óbvias não são enxergadas. A falha de decodificação, eu poderia dizer à minha analista.
Eu estou ruindo.
Para ficarmos com Gramsci, entortado: o velho está morrendo e o novo não pode nascer. Neste interregno, uma grande variedade de sintomas disfóricos aparece.
Não é irônico escrever isso. Nem um pouco.
Veja bem: há uma hora, caminhando por Ipanema na volta de um lançamento lotado na Travessa, me senti pelado. A cueca era excessivamente folgada, o vento entrava por debaixo do vestido e seu tecido aderia ao meu corpo. Não era mais uma figura de vestido, mas uma figura. Andando sozinha na noite, depois de esbarrar com C. na saída do metrô, e agora com medo de escrever esta newsletter usando pronomes femininos, veja bem.
Veja mais ainda: estou lendo Camila Sosa Villada. Seu O parque das irmãs magníficas, traduzido por Joca Reiners Terron, me causa a mesma sensação do Argonautas de Maggie Nelson, em tradução de Rogério Bettoni, ou os dois livros de Paul Preciado que li, Manifesto contrassexual e Eu sou o monstro que vos fala, traduzidos respectivamente por Maria Paula Gurgel Rodrigues e Carla Rodrigues. Num plano muito íntimo, é como se essa bibliografia me devolvesse a lente da realidade. As portas flamejantes por todos os lados, o horror, mas uma certeza indelével.
Tem dias que acordo, boto um short, desço ao supermercado e me sinto uma fraude. Não poderia estar assim. Não quero estar assim. Não sou assim. Preciso subir em casa, botar a saia, me maquiar, deixar vir. Mas vir o quê? Vir quem?
Penso o nome. Não digo.
Lembro os contos.
Espero.
As primeiras tentativas de se livrar do horror são sempre desastrosas.
Ver, mas não enxergar.
Existir, mas não ser.
O corolário da dor é a juventude. Mas também o cinismo.
Antigamente eu tinha tudo que se supõe ideal para um garotinho, mas o medo me paralisava.
Agora que só me resta a literatura, Maria Isabel e os afetos, a coragem brota. Uma linguagem esquisita, mas ainda assim.
E enquanto isso, quando ninguém se dá conta, os paralelepípedos continuam ali, à espera, uma resma de palimpsestos no entroncamento das vidas da minha avó e das minhas, que, sim, são múltiplas.
A economia do medo é a ruína.
É noite, Maria Isabel dorme. Os cabelos da minha melhor amiga brilham em mim.
Me dou conta, súbito: só é preciso enxergar aquilo que não se vê.
Macaquinho.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
Se você curtiu, me escreve. Basta responder este e-mail.
Se não curtiu, também me diga. É sempre bom saber como melhorar.
Beijos e até a próxima ❤️
eu não tenho palavras pra descrever o quanto esse texto me pegou. você já usou todas que eu poderia querer.
Eu amo a tua voz da escrita. É como uma tradução do que se sente e nunca se encontra exatamente em palavras. Até eu te ler e tudo está ali: sentimento, palavra e mais. Te leio e lembro de Caio F. (que eu amo demais demais). Um abraço carinhoso