Revejo L. após anos. A última vez que estivemos juntas foi numa sorveteria no Leblon, após uma ida à Argumento. Você sempre quer me falir, ela diz agora, na Travessa de Ipanema, enquanto empurro mais um livro para a pilha que cresce em seus braços.
A desculpa para o encontro era o fato de L. ainda não ter um exemplar de Formigas no paraíso – esgotado na editora, a caminho da reimpressão –, mas acaba virando uma oportunidade de olhar para o passado com mais delicadeza. A parte boa antes de tudo desandar.
Nos últimos anos, apesar do Instagram e das trocas aqui e ali, ainda não tínhamos sentado para conversar, olho no olho.
Depois, já em Botafogo, descubro que não lembro da primeira vez em que nos encontramos. Como muitas coisas na névoa de 2013 a 2017, esse momento também se perdeu. Foi num show do Caetano, ela diz, eu sentei lá em cima e te vi – mas ignoro completamente essa informação. L. se materializa na minha memória numa noite em Copacabana, na véspera da minha ida para Roma. E o mês em que fiquei fora. E tudo o que se seguiu.
Quando já devoramos os sanduíches e a salada com queijo de cabra, ela pergunta com muito tato como me descobri queer. Fico emocionada pelo cuidado, tento não transparecer. Na época em que estivemos juntas isso não era um assunto porque eu mesma não sabia como definir a nuvem de vontades escondida num fundo de armário.
Então conto de 2015. As sensações. O longo ano de 2020. As sessões de análise, quatro, cinco vezes por semana. A solidão profunda.
Eu imagino, ela diz.
Prossigo dizendo que é foda, quer dizer, eu gosto de mulher também, não é uma exclusão, o problema é que as pessoas acham que eu fui para o outro lado e eu só quero ficar no meio.
As pessoas não conseguem entender, L. sorri, mas a gente tem que bancar o desejo. Eu, por exemplo, não quero casar e não quero ter filhos e tô ótima com isso.
Aproveito a oportunidade para confessar que ela virou um case para minha analista. Talvez tenha sido a pessoa mais compatível com quem cruzei, e no dia em que terminamos fui para minha melhor amiga e ouvi seu então namorado me dizer “não quero me relacionar com ninguém significa não quero me relacionar com você”, uma frase óbvia que já repeti a diversas pessoas passando por términos, mas que até então eu não havia me ligado, e lembro que senti uma eletricidade percorrendo a espinha porque não era bem uma questão comigo, como o namorado da minha melhor amiga fazia crer; em algum espaço muito escondido, eu tinha certeza de que L. estava sendo honesta, e nem um príncipe num cavalo branco alado a demoveria daquela decisão.
Meu último namoro mesmo foi há doze anos, ela prossegue, com meu ex-marido. Eu tô muito bem sozinha. As pessoas falam disso como se fosse um problema, e não é, sabe, me deixa, eu não quero me sentir presa a ninguém.
Sorrio. Porque entendo.
[Durante muitos anos eu senti uma angústia pela antecipação de me relacionar. Meus dois pais e minha mãe, até encontrarem a configuração ideal para suas vidas amorosas, passaram por relações que me fizeram temer os encontros. A sucessão de términos de amigas também não contribuiu para diminuir a ansiedade. Era como se todo início contivesse um fim que não passava pela morte ou pela ausência de sofrimento – o limite intransponível que se relacionar amorosamente com alguém implica: vai acabar, e a tragédia das famílias ao seu redor vai ser a sua.
Demorou muitos anos de análise para eu entender que minhas tragédias eram outras, e as interseções não eram tanta culpa minha assim. Quer dizer, o importante não é a herança, mas o que você faz com ela.]
Eu queria ouvir L.
L. dorme cedo. Tem reuniões às sete da manhã, vive entre o Rio e outra cidade grande e, antes de jantarmos, me mostra fotos da sua gata. Ficamos um tempão falando de bichos, de como nossas gatas nos salvaram a vida.
Quando vai embora, me sinto revigorada. É como se alguém me dissesse que as coisas têm um jeito manso, que bancar o desejo nem sempre é ruim.
Na maioria das vezes, é a única solução possível.
Deixo L. no Uber e vou encontrar G. num bar em Botafogo. Ela me conta seu último problema amoroso, que escuto enquanto o ar-condicionado pinga gotas grossas na minha calça e o metrô passa por baixo da casa, sacudindo o chão. Dou alguns conselhos tronchos, não sou a melhor pessoa para isso. Me limito a dizer que quando o fim é bom, não existe angústia. Conto de L. e de como ela conseguiu bancar o desejo com uma leveza bonita. Espero que G. também banque.
No carro, a caminho do metrô, ela conta que arranjou uma lesão no trapézio.
— Você é o Neymar do Humaitá — digo —, só se lesiona.
— Ai, que horror. Vai, me diz alguém de esquerda que tenha se machucado.
— Lênin.
Em casa, Maria Isabel me recebe com miados e agora, enquanto escrevo, dorme junto à minha perna. Escuto a voz de Emanuelle Araújo cantar Jards: meu amor é um tigre de papel perdido nos lençóis da casa. Mas os tigres também são livres, imagino. Há uma savana por aí, e nela L. e G. sobrevivem dia após dia.
Daqui, do meio do rio, indo de uma margem a outra, minha saia, meus tênis, meu lápis de olho, minhas cuecas, observo quieta.
É questão de tempo até ouvir o rugido.
Um tigre de papel.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️