Parte dessa newsletter foi ditada em áudios de whatsapp na noite de domingo, cruzando a ciclovia que liga Copacabana a Botafogo.
Estou na sala de espera de uma clínica. Minha mãe vai fazer um exame e esperamos enquanto ela não é chamada. Ao meu lado, um rapaz de uns quarenta anos segura umas folhas grampeadas. Leio com o rabo do olho, curiosidade a mil. Paro na data do canto superior direito: 23/01/2005.
Não é possível, penso, achei minha alma gêmea de hipocondria, ou melhor, alguém mais hipocondríaco do que eu, e logo começo a imaginar a casa do sujeito, que é até bem-apessoado apesar do sapatênis, e lamento por sua namorada na cadeira ao lado, vislumbro pilhas e pilhas de exames, folhas de raio-X, quem sabe ele também não seja do tipo que dorme dentro de uma máquina de ressonância, o bambambam do barulho produzindo a frequência necessária ao sono — no meu caso, apesar da surdez, ao longo dos anos fiquei craque em dormir durante ressonâncias, cada ruído diferente conduzindo a uma área do nirvana, a paz vindo pela música como se John Cage se materializasse numa sala fria, pairando sobre o cobertor e o plástico que mantém o corpo no lugar, para a máquina não errar. É importante não errar.
Sobretudo a máquina.
Mudo de cadeira. Assisto ao jogo, Espanha e Marrocos. Não vejo mais o rapaz.
Os marroquinos parecem o Fluminense jogando, o que me causa uma estranha agonia. Um marcador espanhol toma um drible desconcertante, nível Garrincha, e sorrio. É começo da tarde na Tijuca e lá embaixo a loja do Cantão permanece no mesmo lugar em que estava quando minha mãe saiu de Ipanema, tomou o ônibus até Botafogo, entrou no metrô e foi trabalhar pela primeira vez. Depois eu pedi transferência pra Copacabana, ela disse, as mãos no meu braço.
O interior brilha, quem passa não consegue desviar do cheiro que todas as lojas exalam, uma mistura de tecido, perfume marcante e uma injeção de estímulos que vem das luzes meio amareladas. Mas não tem clientes. Nas outras lojas também não. É como se a galeria fosse uma enorme maquete em tamanho real, um cenário, o que me leva a um pensamento que ocorre com frequência, quando vou ao shopping ou passo em frente às galerias do Largo do Machado ou da rua do Catete, o sol castigando a cidade: nenhuma pessoa nas lojas, todo mundo na calçada, mostruários, vitrines, manequins, tudo vazio. Uma cidade — um país — feita de vínculos partidos, muita luz para pouca sombra.
É preciso marcar as fronteiras, estabelecer pactos. Deixar que tudo não fique tão uniforme.
A chuva desaba. Tomamos um táxi, a Espanha está fora.
Ruído.
Cruzo bairros de bicicleta. É domingo, o Brasil caiu e o futebol já não é mais tudo isso. Quando encontrei L. semana passada, perguntei se ela assistiria aos jogos. Respondeu que não, durante a partida ia fazer a unha, ficar lendo. Mas você assiste ao Fluminense, eu disse. Claro, ela riu, o Fluminense é muito mais importante do que a Seleção.
Não pude discordar.
Algo em mim se partiu no dia da final da Libertadores de 2008, quando, após perdermos nos pênaltis, minha mãe pousou a mão no meu ombro na saída da arquibancada e disse “Relaxa, é só um jogo”, ou algo do tipo, mas a ideia era essa, e hoje, catorze anos depois, não acho que ela estivesse errada no sentido mais fundo da questão: o futebol é sempre um jogo. A história das paixões é sempre sobre nós, e não o mundo. Pouco importa às pessoas vivendo suas vidas se você está cruzando a cidade para beijar uma pessoa querida ou fugir do fato de que um amor da vida morreu. O mundo flui. Apesar de tudo.
Conforme avanço, a cada metro tudo escurece. As formas da cidade vão dando lugar à imposição da luz, como o mármore da estátua camuflando as coisas dos moradores de rua na saída do túnel. Copacabana e seu caos, sua confusão, o carro da Prefeitura limpando a ciclovia às seis horas de domingo, quando todo mundo sai da praia. O termômetro de rua marca vinte e seis graus. Os carros zunem e ignoram o sinal de atravessar, guardas de trânsito em seus coletes amarelos e tarjas cinza brilhantes deixam que avancem. Debaixo da concessionária, um barraco improvisado com mantas divide espaço com adesivos rasgados de ALUGA-SE. Por cima da ruína, o apartamento do segundo andar dissolve a TV ligada numa persiana entreaberta, luz creme dando conforto à moradia. Os guardas liberam para os ciclistas.
Agora que pedalo de volta para casa, lembro de quando fazia isso com meu pai. Íamos até Ipanema, ele atrás de mim, ou na frente, ou ao lado, nós dois, junts, e depois invariavelmente parávamos no Rio Sul, deixávamos a bike na Lauro Muller e comíamos um crepe no Chez Michou após visitar minha mãe na loja em que ela trabalhava — bonita, bem iluminada, vestidos nas araras em cores sóbrias, nunca escandalosas, naquela época tinha clientes, minha mãe saía comigo e antes deixava caixas de roupa, sacolas etc. na portaria de alguma delas, me apresentava —, até que houve um dia em que saímos para pedalar nós três e um dos meninos mais populares da minha sala, e ali no elevado da Pasteur, no posto de gasolina, o aro de uma bicicleta soltou, entrou no meu calcanhar, e paramos. Lembro que comecei a chorar, um minichilique, e ouvi Para de chorar, aí súbito lembrei que estava na presença de E. — que em breve se tornaria um dos meus grandes amigos — e me dei conta de que estava fazendo escândalo na sua frente, o que os outros iam pensar?, de modo que gritar com um ferro no calcanhar era uma vergonha, eu tinha que ser forte, forte forte forte e até hoje, agora, ali, passando pelo elevado da Pasteur, são pouquíssimas as vezes em que não me lembro disso, do meu amigo, do meu pai, do ferro, da cicatriz no calcanhar e o desejo e a vontade de ir, sempre ir, ir indo.
Ainda está lá. Como uma loja no térreo de uma galeria, indiferente aos carros e à chuva que cai na praça.
Tarde.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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