Fui ao cinema depois de meses. Queria dizer que a demora se deveu à literatura ter me tragado cada vez mais, entretanto a verdade é que não; a perspectiva de ficar numa sala assistindo por duas horas a alguma coisa faz minha ansiedade disparar em níveis astronômicos — depois, quando já estou na tal sala, tudo se dissipa. O filme e as reações que me provoca ocorrem simultaneamente, abrindo dois planos mentais: o do filme propriamente dito e o da reflexão do filme. O resultado é positivo, saio com uma energia incrível e querendo escrever, pensar, reagir, discutir, mas a descarga mental é tamanha que me fecho — como a Sophie de Aftersun, estreia da diretora e roteirista Charlotte Wells a que assisti há algumas horas, quando contempla o seu próprio mundo após o exterior lhe mandar alertas demais.
Me interessei pelo filme porque vi muita gente falando sobre. Essa parte, pelo menos, é verdade: a literatura me sugou tanto que não sou mais a mesma pessoa interessada por cinema que fui na infância. Passei anos e anos indo à Macedônia, no Largo do Machado, para alugar fitas e depois, DVDs. Minha avó ia junto e eu pedia dicas de filmes da sua época — ela quase nunca se lembrava de algo tão forte quanto ...E o vento levou, Clark Gable amor da sua vida, mas me falava dos atores, e assim, tentando medir suas importâncias, eu decidia quais filmes levar.
Invariavelmente optava pelos de aventura, ou os que tivessem uma seriedade diluída. Foi assim que me apaixonei por 007 e, mais ainda, pelos seriados de cinema dos anos 1930 e 1940. Flash Gordon, Capitão Marvel, Capitão Meia-Noite, Nyoka, Superman, Batman, O Fantasma: assisti a quase todos os seriados que a ClassicLine soltava por aqui, películas algo ingênuas que minha avó recordava serem as estrelas da Sessão Passatempo, e então falava sobre as idas com os irmãos, meu tio-avô barrado no São Luiz [acho] porque não tinha idade para assistir ao Zorro de Tyrone Power, um dos meus filmes clássicos favoritos até hoje — Linda Darnell, que beleza, amor da minha vida.
Passei a infância com a convicção de que me tornaria crítico de cinema. Parecia o caminho natural. No entanto, a vida se impôs.
Há alguns meses, empreendi uma maratona: durante alguns dias, deitava na sala à noite e via um filme da Nova Hollywood. Estava num pico de ansiedade e ver filmes eletrizantes, meio neonoir, me trazia um conforto justo, tátil.
Hoje, de volta à sala escura, me vi novamente em contato com o oposto da solidão. Se a literatura o faz por vias mais subterrâneas — um jeito de contar, uma escolha de palavras, uma relação íntima com a obra —, o cinema e sua experiência muito mais compartilhada me deixam a certeza de que não é possível estar só e ser a única pessoa a ter vivido uma certa emoção ou passagem. Como se o cinema fosse um ponto que inflexiona e transforma em coletivo, de modo muito mais fácil do que a literatura, certas passagens da nossa própria história.
Já tinha me identificado brutalmente com a Sophie de Aftersun, a menina que vai passar as férias com o pai, fica documentando tudo e, no futuro, tenta recordar aqueles dias para aplacar um vazio muito nítido que, espertamente, não é mencionado — a construção do vácuo talvez seja o grande mérito do filme, os planos bem construídos, cheios de camadas (a cena da filmagem na TV, o rosto do pai no espelho no canto esquerdo, é sublime) —, mas o que me deixou mais feliz foi que Aftersun me fez lembrar.
Há uma hora no filme em que os animadores do hotel dançam Macarena. Estamos no início dos anos 1990 e os primeiros acordes trazem uma gama de sensações que talvez os gringos não apreendam. Há algo de muito brasileiro em dançar Macarena, ou então sou eu que permito que me invada a memória das colônias de férias no Exército.
Por alguns anos, passei as férias de verão indo ao Forte do Leme, semanas de verdadeira alegria que traziam junto o aviso de praxe envolvendo os militares. Não que eu pensasse nisso. Jamais me esqueço: chegávamos de manhã cedo, fazíamos um aquecimento recheado de canções como Macarena ou as do Rouge, bombando na época, e os militares dançavam, ensinavam a coreografia — hoje penso que poderiam ser jovens contratados externamente, não sei. Depois, dividiam-nos em turmas, por idade.
Essa memória me veio durante a tal cena de Aftersun, e me trouxe duas outras que volta e meia me lembro com certo fascínio pelas condições da infância, certa independência que me faz ter saudade de um ímpeto que julgo ter perdido na maior parte das vezes — ainda bem, penso: a primeira, e nem tão impetuosa assim, a figura de Wilson.
Ele era o animador, e tenho muito viva em mim sua imagem de barba cerrada, levemente aloirada, óculos escuros, um sorriso lindo. Na lembrança ele está sentado de regata ao meu lado no ônibus, os braços apoiados no encosto, e estamos voltando de algum passeio. Alguém berra Ai, Wilson, vai, no ritmo da paródia de “I will survive”. Tínhamos o quê, nove, dez anos, e me lembro que, voltando para o Forte, entendi que a colônia iria acabar e eu nunca mais o veria. Nunca mais vou te ver?, indaguei, e acho que ele riu. Hoje sei que era uma expansão: perder Wilson era perder os amigos temporários dos dias no Forte, a experiência coletiva da diversão, que não era tão constante assim na escola — a novidade, outras pessoas dividindo a experiência de existir no Rio de Janeiro na mesma época que eu também o fazia. Éramos crianças e compartilhar uma interseção na vida nos unia. Anos depois, quando fui fazer a colônia do Forte da Urca, me senti num horror profundo. Não havia nada de vivo ali.
A segunda memória: estou correndo no campo no qual, no Ensino Médio, se dará as Olimpíadas da escola. Mas ainda não sei disso. Estou correndo no campo, um gramado de futebol do Forte, porque um menino está atrás de mim. Ele é maior. Na minha memória se parece com V., de outra colônia, a do Fluminense, mas é a voz do sujeito responsável que não me deixa mentir: Parem de brigar! Parem de brigar! Vocês fizeram um juramento! e eu corria gritando Dane-se o juramento.
Definitivamente, um ímpeto.
Volto ao cinema como quem volta à infância. Vejo filmes para me atrair para a memória. Quando ela passou a ser fabricada por instâncias artificiais, abandonei os filmes de super-herói. Não sinto mais tesão nenhum. Se assistir, será a um ou outro, e não mais religiosamente como antes, eu e meu pai nos encontrando no foyer e depois comentando, discutindo teorias.
Uma das memórias mais gostosas e curiosas que tenho envolve a estreia de A vingança dos Sith. O cinema a que fui hoje ainda se chamava Artplex e salas com som THX ainda eram uma novidade. Estávamos na fila quando meu pai falou com algum fiscal, algo assim — eu era menor do que a classificação indicativa —, e o chamei pelo nome. Depois o ouvi dizendo: Pô, eu digo ao cara que sou seu pai e você me chama de F.?
Até hoje eu chamo meu pai pelo nome. Ele é meu pai para os outros. Para mim vai ser sempre alguém para além da função social. E o fato de termos construído isso – ele se casou com a minha mãe e me adotou quando eu tinha seis anos – me enche de uma felicidade difusa. Absoluta, sim, com certeza, mas consciente dos pontos de diferença.
É preciso não querer se absorver no outro.
É preciso se absolver no outro.
E essa talvez seja a maior lição de Aftersun – que vai da alegria ao horror em um segundo, nunca mais vou ouvir “Tender”, do Blur, da mesma forma. As memórias de Sophie a respeito do pai não a redimem em sua dor, mas o fazem alguém infinitamente maior pela empatia que ela, no futuro, lhe devota, compreendendo-o, ou tentando, até os limites da memória, em sua dimensão de homem, pai, jovem num país quebrado, um mundo partido.
Em 2015, quando voltei a Roma após oito anos, comecei a escavar mais a história da família. Meu pai biológico, minha mãe, as figuras que eram antes que eu viesse – mas também meu tio, minha avó, minha tia, o centro e a periferia que, na narrativa da memória, sempre se misturam.
A melhor chance de sabermos quem somos reside em sabermos quem são as pessoas à nossa volta. Fazer um esforço, tanto quanto possível, para transformá-las não em pais, mães, tios, avós, padrinhos: humanos, figuras tridimensionais, de cujas vidas somos só a interseção. Do contrário, estamos fadados a nos considerar o sol ou o abismo de tudo que nos circunda, e isso, o cinema já ensinou, mas antes dele Bartleby, no século XIX: é melhor não.
Um filme bonito.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️
Vi ontem o filme e te ler, hoje, foi um alento. Procurando formas de manter o retrogosto de Aftersun por mais um pouquinho...
Mateus, que texto incrível. Sua sensibilidade me abraçou e acarinhou de um jeito que não experimentava há séculos...