Na praia. Um paredão branco se estende atrás de nós, sem nenhuma textura; é apenas um lençol opaco de água sobre o chão, quilos e quilos de enchente camuflados sob um aspecto uniforme, sem profundidade.
Uma vez, I. constatou que tudo que eu mais gostava envolvia a chuva — o vídeo d'A chuva castiga os cariocas, o livro O silêncio da chuva, a canção “The rain song”, o disco Supercarioca, sobre as chuvas no Rio em 1988. Na hora eu ri, mas depois fiquei preocupad.
Agora, olhando o mar e a paisagem azulada que se comprime em direção às Cagarras, penso no que está atrás e vai chegar, os pingos interrompendo a leitura do livro de Monique Wittig traduzido por Maíra Mendes Galvão, e uma mulher de vestido estampado ajoelhada diante do mar, na areia, com seus dois filhos. Ao lado, a babá, toda de branco, impávida, como a água por trás.
O Dois Irmãos parece um recorte. Bandeiras vermelhas assumem que o mar não está para banho. No entanto, há vinte minutos, antes de encontrar B. deitada a dez metros de mim, por acaso, pisei na água e molhei algumas partes. Ao longe, sob as gaivotas, adolescentes não se importam com o aviso — vermelho.
A mulher com as duas crianças — uma menina de vestido e cabelo cheio de tranças, um menino de bermuda e camisa — se senta na areia. Conversa com ambos. A babá a tudo observa, calada, braço na cintura. Enquanto a mãe faz vídeos, penso na cena como uma visita fora da cadeia. É sexta-feira e estão arrumadas demais para a praia. Uma fuga da rotina. Um lapso. Tudo na mulher, da expressão à forma como se senta, denota uma inquietação que não consigo decifrar. Resisto à ideia de que algo ruim acontece em volta. Tento me concentrar em alguma positividade. Penso na babá. É mais forte, é mais difícil: todos estão presos.
Uma nuvem de fumaça branca aquosa varre a orla. A chuva desce sem clemência, gotas como flechas furando as últimas superfícies do dia.
Peço a F. para pagar na próxima, ao que ela concorda de pronto, e subo as escadas atrás de uma família apressada. Quando chego ao calçadão, pessoas correm, algumas caminham. O toque dos meus pés nas pedras revela um calor que rima com o cheiro, inconfundível. A terra, úmida, se aquece de fogo.
Na esquina, um bar lotado. A banda lá dentro faz uma versão de Jorge Ben, com uma voz feminina: “O telefone tocou novamente”.
A água encharca meu corpo. Guardo o celular, começo a cantar pelas ruas. Dobro numa transversal e me abrigo debaixo do toldo do supermercado, junto com outras pessoas.
Em dez minutos a chuva passa.
Garoa na praça General Osório. O resto de céu azul corta caminho por um buraco oval acima dos edifícios. A entrada da estação parece uma piscina de água morna. Lá embaixo, o mármore absorve rastros enlameados.
São 18h24, a noite ainda não caiu e a cidade se prepara para voltar para casa antes de ficar submersa.
Sábado, pela manhã.
Acordo e imediatamente começa um barulho, uma bateção, homens conversando.
Moro em cima de uma farmácia, da janela enxergo seu telhado de metal, franjas e mais franjas lado a lado, que agora está em reforma. Alguns homens caminham pouco abaixo da minha janela. Usam uniforme cinza, falam alto, trocam instruções, movem folhas de metal pesado pelo telhado. Usa a luva, um deles grita.
Maria Isabel está na janela. Sai quando me aproximo, inquieta. Depois volta. Na última vez em que vou olhar, está deitada e não se mexe. Observa atentamente com seus olhos verde-límpido o que acontece a alguns metros, abaixo.
Mais tarde, saio para pedalar. Vou até o topo da General Glicério, depois até a Urca e volto. Quando chego, Maria Isabel corre pela sala e ocupa os espaços como uma gazela. Salta no ar, plana, aterrissa com uma graça que nunca vi — dura um segundo, mas fica pelo tempo da eternidade da beleza.
Domingo. Penso na chuva. A memória da água talvez seja das mais importantes.
Enquanto a final da Copa do Mundo não acaba, o céu espera para despencar. Fica um vai-não-vai. Desde o fim da manhã, quando acordo, não paro de pensar em 2002. Há 20 anos eu também estava na minha avó, com um medo solitário que não tive vontade de contar para ninguém: Oliver Kahn era uma barreira. Nos anos seguintes, ao chegar da escola eu buscaria na estante meu DVD daquele campeonato e jamais me esqueceria da narração de Luis Alberto Volpe: a Alemanha começava a perder o título numa falha de seu venerado goleiro.
Ainda vejo os gols, meu corpo na mesma sala, outro sofá, sentado na luz da manhã, algo sombreado, depois minha mãe dizendo que iríamos a Ipanema, para a comemoração, e na mesma Ipanema de anteontem, agora sem carro de bombeiro, sem o Casseta & Planeta e eu aparecendo no vídeo, puxando o microfone para baixo, no mesmo lugar colocaria meus pés no asfalto após sair da praia — gosto disso, pisar no asfalto com os pés descalços, deixando a areia sair por livre e espontânea vontade. Também não havia Oliver Kahn. Em algum desses últimos jogos, ele apareceu na arquibancada e tive um sobressalto. Os medos nunca envelhecem. Ainda entendo aquela criança que não sabia como o futebol — ou qualquer coisa — poderia superar as expectativas diante de evidências tão... nítidas.
O legado da maturidade é insistir no opaco.
A final de Messi e companhia talvez tenha sido a maior das últimas décadas. Um espetáculo de futebol, à altura do que todos queríamos. E ainda bem que não foi o Brasil.
Mas e se.
Penso em Oliver Kahn. Penso na chuva. Algumas coisas são tão intransponíveis que vazam. Como se a força não aguentasse o brilho. Um homem, um tempo, alguém que tem muita gana de ser aquilo que não é.
Aqui, agora, escrevendo isso, me dou conta do sorriso de ontem.
Horas antes, no sábado, assim que acordei, comecei a ler As guerrilheiras, de Monique Wittig, em tradução de Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo.
O início: “Quando chove, elas ficam no quiosque. Escuta-se a água bater nas telhas e deslizar pelas encostas do telhado. Franjas de chuva cercam o pavilhão do jardim, a água flui mais intensa pelos ângulos, é como se um manancial escavasse os pedregulhos ao tocar o solo.”
Ou, ainda, como se alguém fizesse um corta-luz. Na beira da área. Outro chutando.
Vinte anos antes eu já estive aqui.
Um paredão branco.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️