Terraleste #78 | Copenhagen, Ipanema
Em que o cinema e o mar cumprem mais do que seu papel – mas não só.
Escrevo na praia. É o terceiro dia de 2023 e o sol arde feito carvão incandescente. Estamos todos na mesma churrasqueira — eu, a menina brincando de escavar a areia do meu lado e a multidão de pessoas em volta —, o que transforma o Posto 8 em um refúgio do mar.
A água hoje está mais gelada do que ontem. Penso se no Leme está melhor — M. sempre me zoa quando falo de pegar praia em Ipanema, e na véspera de ano novo, quando mergulhamos no Leme, caí no mar com sua filha, um ano mais nova do que meu irmão. Antes de ir para um bar na rua de trás, meu pai disse que o mar estava frio.
Existe algo de bonito em vigiar uma criança na água, pensei, como se nunca deixasse de ser um retorno ao útero, e agora sei o que senti em Roma, ensinando meus irmãos a pegar onda quando eu tinha 14 e eles, sete, nove, por aí. O mesmo que senti nos últimos anos com Tommaso, meu irmão caçula, enquanto ele subia nos meus joelhos e saltava de costas no lago de Bracciano.
— Quantos anos você tem? — perguntei certa vez.
— Quarenta — ele disse.
Eu ri porque era verdade. A sabedoria ancestral dos erês, aqui e lá.
Na véspera de ano novo a água não estava gelada. Sob o olhar atento de M., L. e eu furamos ondas como se nos deixando envolver por um algodão grosso.
Passei os últimos dias de dezembro fazendo as pazes com o cinema. Assisti à filmografia básica que havia deixado de lado para me dedicar à literatura, e houve noites em que fui dormir às duas e meia da manhã após uma maratona de quatro longas.
De todos, o que mais me deixou grudada foi “Ladrões de bicicleta”, clássico de Vittorio de Sica. A realidade fria da Itália no pós-guerra podia facilmente ser a do Rio aqui, agora. Em alguma medida me lembrou “Via Ápia”, novo livro de Geovani Martins. O final brutal da história de Antonio e Bruno caçando uma bicicleta pelas ruas de Roma me fez mergulhar cada vez mais na certeza íntima de que vivo numa franja de realidade que conseguiu mascarar a guerra. Aqui na zona sul vivemos à espera de quando a cidade cerzida irá por fim nos engolir.
Ou talvez eu só esteja numa fase de filmes sobre pais e filhos, iniciada pelo lindo “Aftersun” — escrevi sobre ele nesta edição.
Saio da água. O sol fica menos forte. Talvez seja o frio do oceano. Apesar do céu claro sobre a areia, as nuvens detrás da orla cospem um rugido.
Na beira, um pai joga bola com seu filho de no máximo quatro anos.
Dentro d'água, tentei manter meu tronco submerso o máximo possível. Tenho ficado fascinada pelas práticas de A., minha amiga que mora na Dinamarca e quase todos os dias posta seus mergulhos no rio gelado. Há uma técnica, ela disse, que consiste em ficar três minutos por dia sob uma temperatura capaz de deixar seu corpo em intenso estresse. Para bipolares, explicou, ajuda muito.
Respondi que nunca consegui ficar na água fria sem querer desesperadamente respirar. É como se meu corpo entrasse num processo de implosão e minha consciência se visse atada por dentro a uma casca intransponível.
A. detalhou o processo. Disse que a técnica consiste em controlar isso, via respiração.
Agora é inverno na Dinamarca. Ela mergulha a uma temperatura de três graus centígrados enquanto sua cachorra espera do lado de fora, patinhas na neve. Nas fotos, suas bochechas estão vermelhas.
Estou sentada de frente pro sol. Minhas bochechas estão ficando vermelhas.
É muito fácil, na vida, chegar ao mesmo resultado por métodos completamente errados.
Penso na cidade cerzida.
A delícia e o problema dos processos é a dor.
O sol é uma nesga laranja que corre paralela ao Dois Irmãos.
O rapaz da barraca chega falando que ali, na beira do mar, um cara acabou de agredir uma mulher com uma barra de ferro.
— Comprou uma caipirinha dela, mas tinha pouco álcool. Eu falei pra ele, tu tá errado, não pode bater na mulher.
Um sujeito de sunga listrada e toalha enrolada na cabeça observa a cena. Me olha.
— Tem que agredir ele — diz. — Eu sou bicha, mas também sei dar porrada.
Anoitece no Rio de Janeiro.
Uma cor, um céu.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️
Que lindo. Meio nublado como aquelas passagens que só existem na nossa memória.