Terraleste #79 | Óculos para Carolina
Em que Chico Buarque antecipa e refunda um coração e um Brasil — mas não só.
Um
Demorei mais de um ano e meio para entender que os ruídos no meio da noite eram do metrô. Meu prédio fica atrás da estação, enfiada sob o asfalto, mas de frente para o respiradouro. Não deveria ser nenhuma surpresa, portanto, sair do banho no final da tarde e ouvir a musiquinha inconfundível. Mas foi. Permaneci alguns segundos na mais pura dissociação cognitiva para então me ver num estado de perplexidade: também vinham do metrô os ruídos na noite, quando a cidade fica silenciosa; era o metrô vibrando o ar no meio da tarde.
Essa sensação voltou com força na sexta-feira, quando fui assistir a Chico Buarque depois de quase três anos. A última vez que o vi foi no show de verão da Mangueira, pouco antes de estourar a pandemia. Ir ao Vivo Rio naquela noite tinha um caráter especial: após um término avassalador, precisava me reconectar comigo, e nada melhor do que testemunhar o gênio fazer aquilo que sabe fazer melhor.
Há dois dias, portanto, voltar ao mesmo Vivo Rio para a parte carioca da turnê de resistência era também comprovar ter resistido não só às perdas amorosas — e foram tantas —, mas também às que o desgoverno dos últimos quatro anos impôs ao tecido social. Sentar na frente do palco, ver Ney Matogrosso chegar, sentir os olhos aguarem com Mônica Salmaso nas primeiras canções e logo o homem vindo aí, O Homem, um dos meus heróis pessoais desvelando sua novena de canções sofisticadíssimas — como é possível que um único ser humano possa ter feito tudo que Chico Buarque fez? —, o reencontro com o Brasil — assim como também o show de Caetano o era —, a pluralidade de vozes, de personagens, de alegorias, de alegrias que nascer nesse país nos dá. Uma súbita revelação como uma rede de túneis e trilhos atrás de casa. Uma arquitetura enorme da qual a gente de vez em quando se dá conta e fica num estado inefável.
Pensei tudo isso depois de ouvir “Biscate”, “Samba do grande amor” e “Bancarrota blues”, antes de “João e Maria”, quando meu peito foi invadido por uma torrente de lágrimas que custavam a sair, mas por dentro era o próprio Niágara. A canção mais bonita do mundo, ali, na minha frente, e o Vivo Rio tremendo pela felicidade de bradar versos tão lindos — uma operação dupla, a letra doloridíssima e uma alegria violenta como podem ser as alegrias libertadoras.
Aí no domingo os bolsonaristas invadiram Brasília.
Dois
À tarde, no mesmo metrô, a caminho da Carioca, onde vi pelo Instagram uns stories de gente pulando carnaval. Estava às voltas com um frila, não conseguia terminar, achei melhor dar uma espairecida no Centro, meu lugar. Aquelas ruas, o abismo dos prédios quase vergando e devorando a carne.
Quando saí já tinham começado as notícias.
Depois, assim que entrei no Teatro Riachuelo para tocar piano, tudo tinha piorado. Alheios, rapazes de máscara reformavam o Centro Cultural Caixa, três moças uniformizadas de terninho conversavam no café fechado; o piano continuava intacto. Enrolei duas músicas e fui embora, era tudo opressivo – o cheiro de produto químico, as vozes altas, o carnaval indiferente, o país sacudindo, implodindo.
Minha mãe me escreveu, aflita. Liguei a televisão. Hordas bolsonaristas, transmissão dupla com a Globo News, silêncio apavorante nas ruas. Maria Isabel deitou no encosto do sofá e ficou me olhando de cima. Entende tudo.
Agora, quase à meia-noite, penso em Chico Buarque. No sábado ele fez o mesmo show vestindo um boné escrito CPX. São quase 60 anos alertando, desenhando, tornando nítido que o Brasil é uma tentativa de deserto cujos oásis brilham de forma imensa, maiores que o mundo. Que sejamos capazes de nos molhar e resistir se deve em grande parte ao que foi forjado pela geração que começa a minguar. A partida de Gal é só um prenúncio. Não quero, não posso crer.
Lembro de L. chorando na minha frente durante “Sol/ A culpa deve ser do sol/ Que bate na moleira/ O sol”, e seu namorado, negro, sentado no sofá enquanto eu mostrava a então nova música de Chico Buarque. Era outro ano aquele, mas as agruras de “As caravanas” também ribombavam no Vivo Rio, o Brasil gritando contra as entranhas.
Enquanto bolsonaristas depredavam símbolos — mais, mais —, as pessoas nos antigos cais não viam que lá fora, amor, uma rosa morreu, a festa acabou, nosso barco partiu.
Mas ainda assim algo irrompe na terra.
E o pronunciamento de Lula só deixa claro que das fendas escavadas no chão ainda há de brotar propícia estação.
É melhor que Carolina compre óculos para quando o carnaval chegar.
Um alívio no meio do tumulto.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️