Um.
Existe uma suspensão ao escrever na praia. Não “na praia” como sair-da-cidade-e-viajar-para-ver-o-oceano-e-escrever-alguma-coisa, mas sair de casa, no meio da cidade, cruzar esse espaço cheio de prédios e asfalto, pegar uma cadeira na barraca de sua preferência, escolher o melhor ponto da areia e então catar o celular para tentar escrever algo. Como isso aqui.
É uma suspensão momentânea, mas forte. Por milhões de anos, as rochas lutaram contra o vento e perderam a batalha. O resultado é uma imensa cama macia de tecido morno, milhares de pessoas sentadas ou deitadas, ou então fugindo da água.
Um espetáculo bonito, a água. Quando cheguei, há pouco mais de uma hora, o mar estava lotado. Jovens, crianças e adultos se acumulavam. Bastou as primeiras ondas engolirem uns centímetros da areia para a paisagem mudar.
Agora todo mundo está recuado.
As rochas perderam, mas o mar sempre vence.
À minha frente está um casal de uns vinte anos. São bonitos como é possível ser quando se tem vinte anos e tenta construir algo que fuja dos seus pais. O objetivo do amor é fugir do que veio antes e sempre se refundar. Ou talvez seja só o da psicanálise. Ao lado deles, um grupo de quatro amigos. São também casais que brincam com seus filhos.
Há coisa de meia hora, um jovem se aproximou de mim com um pacote de balas.
Desculpa interromper sua leitura, ele disse, mas o amigo tem 16 anos e precisa tirar a namorada da casa dos pais porque ela tá grávida, teria como me dar um trocado pra me ajudar a voltar pra casa?
Atrás dele, seus colegas esperam vigiando a caixa de som gigante, que quase molhou de vez numa das subidas da água.
Enquanto o escutava, alguém roubou uma mulher de biquíni laranja.
Dois.
Em frente à barraca está o chuveiro. Desde criança, sinto um estranho fascínio pelo cheiro que essas duchas de praia exalam, uma mistura fluida de combustível e coliformes fecais diluídos numa substância oleosa.
Há quase 20 pessoas na fila. O mar está ligeiramente mais calmo. Penso na casa do meu avô, em Jacarepaguá. Íamos lá, minha mãe e eu, e depois de plantar feijões nos canteiros do quintal era chegada a hora de tomar banho de mangueira. Fazia calor e o jato era como o do cano que observo, as 20 pessoas na fila: algo duro, transparente, uniforme.
As memórias se empilham como mariscos aguardando o fim do mundo.
Ninguém se atreve a devorá-las.
Três.
Pela primeira vez em alguns dias, o céu está azul de uma maneira uniforme. O mesmo tom se espraia das Cagarras ao resto da cidade.
Há um grupo atrás de mim e escuto qualquer coisa de assalto. Me viro. Eles, assim como outras pessoas, estão observando o calçadão.
— Tá rolando porrada?
— Não — me diz um rapaz —, assalto.
— Esse posto aqui é foda — diz outro —, tem que ficar na atividade. Há anos que é assim. Os moleques descem aqui e...
Não escuto mais. Os olhos da praia já estão voltados para outras coisas.
Há duas pessoas na piscina do Fasano, do outro lado da rua. Uma delas tira fotos do sol, que começa a cair entre uma manta de gás. O Dois Irmãos está alaranjado e, ao fundo, a Pedra da Gávea brilha num tom roxo.
Ninguém vai invadir o Fasano, subir até a piscina — ignorando o Londra e sua bandeira do Reino Unido na parede — e levar outros corpos ao espelho d'água.
Mas também nada impede que isso aconteça.
A porta está lá tanto quanto o metrô, dois quarteirões atrás.
Não existem refúgios.
Agora são 18h35.
A praia começa a esvaziar, mas a vibração do tumulto permanece. Uma suspensão tal qual a escrita disso tudo, a natureza em meio ao concreto, enormes trens de ferro contornando as estruturas por baixo, Nova Iguaçu — e também o subúrbio — prestes a receber milhares de pessoas em suas casas, dentre elas um rapaz que veio a Ipanema vender balas para ajudar sua namorada, seu filho que um dia vai nascer.
Mas não é porque está acabando que chegou ao fim. Tudo pode continuar acontecendo nesse instante em que o sol se põe e a noite alarga.
As montanhas ficam da mesma cor. Uma nuvem grossa se prepara para tomá-las.
Escrevo isso e escuto gritos. Mais um assalto.
Pessoas correm, dois rapazes caem na porrada.
Um minuto depois, tudo fica calmo.
Sinto uma agitação, uma vibração sutil pairando, densa como um cobertor encharcado debaixo do qual todo mundo deita.
No Fasano, oito pessoas tiram fotos da paisagem.
Volto ao celular e espero.
Adorei esse cara, outro dia, sentado assim.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️