Quando peguei Maria Isabel, ela cabia na palma da mão e tinha os olhos maiores do que a cara. As orelhas pareciam dois pinheiros altos, espetando o mundo. Durante alguns meses senti um medo impreciso ao vê-la, sempre esperando que entrasse no cio de modo peremptório, como tanta gente tinha me alertado. Eu não sabia se daria conta de uma gata desnorteada.
No início foi a bunda arrebitada. Depois, o líquido viscoso escorrendo. Em seguida, o carinho. Longos chamegos. Então sumiu. E voltou dali a poucos dias com força assombrosa. Meu desespero não tardou a vir. Não pela situação em si, que foi relativamente fácil, inclusive o pós-operatório da castração, mas por algo que nas últimas semanas se desenhou com intenso magnetismo.
Maria Isabel tinha espasmos. Espichava o corpo e não trocava de posição. Eu a agarrava, enchia de beijos, dizia vai passar, vai passar, e apagava a luz para que ela ficasse mais confortável. Lembrava de alguns desesperos clínicos que senti na infância, na adolescência — a coceira no pé por causa da dengue foi inacreditável —, mas nada me tirava a sensação de que eu, como ser humano, sabia que aquilo iria passar logo — ela, não. A agonia de Maria Isabel naqueles minutos me enchia de pavor. Eu te garanto que vai ficar tudo bem, dizia, imitando minha mãe. Você precisa confiar em mim.
E aqueles olhinhos nos meus.
Escrevo isso agora que Maria Isabel dorme junto ao meu pé, de lado, sobre a manta que já virou sua. Parece algo sagrado. E é.
Nesses dias em que tenho ido à praia, me lembro das situações nas quais a equivalência da dor se ausentou. E aqui chamo de dor qualquer desconforto, qualquer momento do passado sem uma possível antevisão do fim do suplício.
As sucessivas entradas no mar me devolveram, afinal, uma memória há muito guardada.
Eu tinha uns oito ou dez anos quando meus pais decidiram ir para Niterói. Era um sábado de sol, cruzamos a ponte de carro, chegamos na praia, ondas bravas, minha mãe na barraca — passa o protetor solar! — e eu querendo ir pra água, mas a água ainda não era minha amiga — por muito tempo não seria — e eu tinha medo de me afogar, de naufragar, então pedi ao meu pai que entrasse comigo, ele era um homem e era alto e era forte, saberia me proteger, eu pedi Entra comigo, vamos na água, mas não com essa voz, outra, uma vozinha, esganiçada, de criança, algo vivo que sabe o que deseja mas não sabe — por muito tempo não sabia — administrar o desejo — lidar com o desejo é coisa séria —, então uma hora, muito tempo depois do primeiro pedido, meu pai me pegou no colo e entrou de qualquer forma na água e tudo que — ainda hoje — lembro é o bico da prancha — branca — correndo junto à minha testa e um caldo absurdo, meu pai me pedindo desculpas pelos anos seguintes, a memória de M. na praia no ano novo dizendo que caixote é pedagógico.
Penso nisso enquanto vejo o pai de sunga azul se enfiar numa onda com a filha no colo.
E sobretudo volto a Maria Isabel.
É só o espasmo.
Domingo. Há um clima de calmaria, ao contrário da última semana.
Quando os vendedores passam, sob um sol inclemente, pechincho o preço do biscoito Globo, mas ninguém cede. Até que para um sujeito alto e forte, de bigode e cavanhaque.
— Não posso fazer por 5 porque isso aqui é o ouro — ele diz e abre os braços: — De tudo que é vendido na praia, nada é mais importante do que isso aqui, o biscoito Globo.
— Tu vende muito?
— Depende. Domingo é fraco.
Olho ao redor, a praia lotada.
Ele continua:
— Hoje só vem farofeiro…
— Os caras já trazem comida de casa.
— Exato. Segunda é o melhor dia.
— Por quê?
— Porque fica vazio, só os moleques com dinheiro.
Ele me entrega um pacote de biscoito salgado e fala baixo, sorrindo:
— Segunda é a melhor gente.
E vai embora.
À noite, no ônibus, entra um cara falando sozinho. Ele tem uma voz que lembra o Mr. Catra. Fica ao lado do homem com dois sacos de plástico enormes, cheios de latinhas. Um sujeito à minha frente começa a chamá-lo de viado, e o cara responde. Seguem-se inacreditáveis cinco minutos de trocas de ofensas gratuitas entre dois estranhos.
— Vou te pegar na Central — diz o sujeito.
— Que Central o quê, porra? Vou saltar antes.
— Peida não, porra.
— Valeu, cu de apito.
Na altura da praça Serzedelo Correia, o cara desce.
— Tabajara, porra! Tabajara é o ouro.
E vai embora, sob gargalhadas gerais.
Pergunto à senhora à minha frente onde ela vai descer.
— No Lido.
— Quer sentar aqui?
— Não precisa.
A mulher ao meu lado ainda ri de toda a situação.
— Rio de Janeiro — digo. — São Paulo não tem isso.
— Pelo menos lá eles são mais educados.
A senhora comenta que os motoristas deviam deixar o pessoal entrar sem se estressar.
— Tem alguns que até chamam a polícia pra não deixar.
— É um absurdo — complemento. — Domingo, sete da noite, não importa quem entra e quem sai, não é como se a companhia fosse saber.
Ela tem o ar de uma vedete congelada no tempo. Aquiesce e começa a murmurar um bolero. Sai no Lido.
O homem das latinhas volta a gritar, ignorando o enxame de luzes vermelhas diante do Copacabana Palace.
— Bora, ô Tartaruga Ninja! Anda logo!
Na altura da Princesa Isabel, um sujeito de camisa do Flamengo entra e coloca seu isopor em cima dos sacos do homem.
— Tu não vai estragar meu saco, né.
— Vou não.
— Tu quer pegar no meu saco?
— Que isso.
— Tu gosta de pegar no saco?
— Tá maluco, negão?
— Pega no saco, porra. Tu vai pegar no meu saco?
E continuam nessa até o Rio Sul, feito novos velhos amigos de infância, quando faço menção de sair.
— Aí, Tartaruga Ninja! Vai descer a vítima!
Rimos.
— Abre aí a porta pro playboy, vai descer!
Salto diante do shopping. É noite no Rio de Janeiro. A cidade me abraça e me presenteia com um espasmo de sua essência. Penso no vendedor de biscoitos, no que deve estar fazendo.
Como é possível que a segunda-feira supere isso?
Como é possível?
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️
Mateus, gostei demais. Uma alegria segui-lo aqui além de segui-lo no Instagram. E salve Maria Isabel.
Como é possível vc escrever tão bem ? Obrigada, Terraleste ❤️