O mar estava muito mexido. Decidi ir embora e dar uma passada numa feirinha de carnaval em Botafogo, onde M. faria drinks e R. venderia tapa-tetas. No fundo, era uma alternativa à hipótese de ficar em casa e não aproveitar a cidade no verão — como se houvesse a clausura no inverno.
Desci na estação do metrô e fui andando, demorei a achar. A feirinha fica numa espécie de sobrado, em cima de dois lances de escada divididos por um patamar repleto do que parece o resto de uma obra inacabada. No pátio, uma música puxada pro eletrônico, nada carnavalesca, e pessoas em looks despretensiosos e toda sorte de badulaque hype pra curtir o carnaval.
O que me capturou a atenção, no entanto, foi a parte de trás da barraca do DJ. Havia uma região escura, algo cinzenta, esquecida na hora de pensar o espaço.
As melhores coisas estão atrás da festa, pensei. Sempre.
As melhores músicas são os lados B, os melhores filmes são os que não arrasam na bilheteria, a melhor coisa rolando numa feira de artigos de carnaval numa esquina de Botafogo não é a feira, nem a música eletrônica — o DJ dança segurando um bebê de headphones —, mas sim a parte baldia detrás de tudo isso, um precipício de cimento sujo, entulho e bordas de arame farpado com vista para a rua Voluntários da Pátria.
Custo a acreditar.
São 19h43 e estou de pé sobre uma marquise, a cinco ou seis metros de onde os carros avançam o sinal verde. Diante de mim está o outro prédio, fachada branca e marrom, apartamentos de janelas fechadas, tons escuros predominando, o restinho de luz que a rede do terceiro andar deixa ver — e eu me pergunto como é que essa pessoa consegue ler esses livros de folha branca na estante.
Junto ao entulho — duas dúzias de sacos de lixo pretos cobertos por lona azul —, o que sobrou da placa: obra: elaboração projeto estrutural mezanino e reforço laje existente loja beach sucos área construída 132m² endereço rua voluntários da pátria 241.
M. chega com um copo d'água e diz que de tarde estava mais bonito.
— Tinha um sol, uma luz. É muito mágico ver a Voluntários assim.
Respondo qualquer coisa. Ela volta à badalação e fico ali, parad diante da cidade. No dia seguinte retornarei com P. e direi que preciso mostrar uma coisa bonita. Abrirei os braços diante da cidade, a garoa ameaçando cair, pingos irrequietos no ar modorrento que envolve a laje até a Casa Firjan, onde estávamos. P. olhará para o vazio, entulho sobre a marquise, e dirá que Bonito não é bem o termo que usaria.
Eu acho lindo, direi.
Mas agora estou com M., que prepara drinks. Cria um para mim, com cajuína, sem álcool porque não bebo. Sinto frio na espinha antes de provar. Quando bate o gosto, digo a única coisa possível: queria poder voltar no passado e entregar ao Mateus de catorze anos, após quatro horas jogando futebol, uma garrafa de litro e meio dessa maravilha.
Muitas vezes a resolução só chega depois, quando as pernas são incapazes de chutar uma bola. O que importa é chegar.
Agora é noite. Passei o fim de semana com P. e foi como um mergulho. Encontrei meu pai na feirinha, comi um falafel delicioso. Aos poucos, sinto que as coisas se encaixam. Não tenho mais catorze anos, não jogo bola, mal corro, mas ainda assim as coisas voltam, navegam a superfície, parecem nítidas como são. Os olhos de P. quando conta uma história. O gosto do drink que M. criou.
O pai de D. trouxe coletes para o play. Recebo a bola depois do meio-campo, ajeito e chuto. C. não pega. Entre o instante de frustração e a correria geral de comemorar, a eternidade. Meu gol encerra o futebol e o fim de semana — amanhã vou à escola, no recreio provavelmente vou querer jogar futebol, sem muito sucesso, e, anos depois, andarei pelas ruas me perguntando o que fazer com um prédio que foi demolido.
Ergueram um edifício onde passei doze anos, será que todos os gols estão presos na garagem, entre os carros? O que se esconde do passado quando o trituramos e condenamos ao retrofit?
Penso em P. O futuro. Em M., em R.
Está tudo ali.
Lá embaixo, um ônibus corta a Voluntários.
A vista dos fundos — frente.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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