Terraleste #85 | O fim e o fim do amor
Em que um post vira uma reflexão sobre as relações — mas não só.
Semana passada, o professor Luiz Antonio Simas postou um texto falando que a primeira escola a desfilar no carnaval marca o início do fim da festa, e a última escola marca o começo da festa seguinte. Uma amiga compartilhou dizendo a mesma coisa sobre escrever um livro — a primeira frase é o fim e a última, o início e a coceirinha do próximo.
Achei bonito que L. relacionasse ambas as coisas — creio que só ela poderia tê-lo feito — e perguntei: Será que o mesmo vale pro amor?
Era noite de segunda-feira e começamos uma troca de mensagens em cima disso. Para minha amiga, trata-se de uma situação diferente. O amor se apaixona por si mesmo, ela disse, a ponto de querer renascer em cima das mesmas linhas. Como uma experiência radical de continuidade que os humanos podem experimentar. No fundo, completou, o amor vive enquanto conta uma história.
Respondi que achava que sim, mas porque nos meus términos sempre ficava pensando no que ia ser quando a dor acabasse, no sentido de que o fim de uma relação abre espaço para sete bilhões de possibilidades. Ela perguntou se não tinha a ver com o fim da dor, querer isso, e eu disse que eram as duas coisas – incluindo o mistério, forte. Gosto da possibilidade de me apaixonar, de saber que o fim de um relacionamento, por mais doloroso, não é o fim do amor. Que tem outras pessoas depois da dor. Pode não ser igual, falei, pode não ser a mesma coisa, mas... se eu desistir de me apaixonar, então não sou mais humana.
Em seguida refleti sobre quem jogou toda a energia desse encontro para outras coisas, por causa do trauma. Múltiplos exemplos na minha família, na família de L.
E hoje em dia isso permanece, por outro viés. O excesso de oferta, de estímulos, de conteúdo, gera uma implosão – só é possível levar uma relação adiante se houver um esforço consciente de renovar os votos dia após dia. Acordar e pensar eu ainda quero ficar com essa pessoa, eu ainda quero isso aqui, apesar da brutalidade dos estímulos – e não tem a ver estritamente com monogamia, acho; trata-se de estabilizar numa espécie de voo de cruzeiro, após a paixão intensa. O que te gruda na carne dessa relação? O que impede que os ossos não sustentem mais nada?
Seguramente não é amor — que raras vezes é o bastante. Amor é o elemento comum, mas a soma do resto, acho, é o que importa de verdade. Tem a ver com atenção aos detalhes muito mais do que assumir para si que gosta daquela pessoa de um jeito superlativo.
Minha amiga disse, Acho que tudo se resume ao verso daquela música, “eu quero a sorte de um amor tranquilo”. Só que nem todo mundo quer. Quando fica tranquilo parece que dá nervoso em muita gente, né?
L. me indicou, por fim, o perfil no Instagram de uma psicóloga com vertente indígena. Achei interessantíssimo — um ponto de vista “ancestral”, ela disse. Em um dos textos, essa psicóloga me fez pensar que há uma raiz por baixo da ética de um relacionamento: ao acordar todo dia, eu olho para essa pessoa?
L. então resolveu o assunto: Para os guaranis, amar é seguir contando ao outro as suas histórias mais sagradas. Se você continua contando, você ama.
Foi como um clarão. Mesmo que minhas relações tenham acabado, consegui olhar para cada uma delas e pensar que por um bom tempo eu quis dividir esse aspecto sagrado. E que se não for assim, criar algo íntimo e cúmplice capaz de dobrar o espaço-tempo em um aspecto que barre o profano, não faz tanto sentido se abrir para outra pessoa.
Não tem a ver com intensidade nem religião. É pura e simplesmente basear o encontro entre dois ou mais seres humanos — nessa esfera boiando no espaço — em um desejo de grandeza. E acredite: na maioria das vezes ela está em um dia de semana, os dois dividindo a cama, cada um fazendo uma coisa, ou então numa lembrança corriqueira ao lavar louça, uma vitrine de loja com uma cor que lembra o perfume no pescoço depois de assistirem a um filme e — meio que a alegria de testemunhar a presença em seus múltiplos caminhos, sabe? As coisas mais sagradas são sempre aquelas que aceitam o mistério da opulência cheia de vertigem da simplicidade.
Pouco tempo depois dessa conversa, e sem saber que ela tinha acontecido, outra amiga veio me mostrar algumas imagens que o Facebook havia recuperado. Eram fotos de umas férias entre ela e seu ex-marido, pai de seu filho, há anos. Mas não só. Naquela mesma data eles também tinham completado um ano de namoro, há tempos ainda mais remotos. Foi bonito, como quem vê de fora, testemunhar a evolução, o carinho que as fotos e a memória não apagam. Pouco importa que tenha chegado ao fim.
— Provavelmente apareceu pro C. também – ela disse. – Ele tá marcado nas fotos.
Lembrei de um poema. Sorri. Mais tarde lembraria dessa frase e de como ela se aplicava a uma sensação muito nítida experimentada durante o show da Letrux cantando “Transa”, na última sexta-feira, mas na hora só respondi:
— Duas pessoas separadas lembrando a mesma coisa no mesmo dia formam um par?
Ana Martins Marques, in Como se fosse a casa: uma correspondência, Relicário, 2017, escrito com Eduardo Jorge.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️
Mas não só mesmo, Matheus
🌟❤️
Me lembrou da maravilhosa happiness, da Taylor Swift.
“There'll be happiness after you
But there was happiness because of you
Both of these things can be true
There is happiness”