Um.
É uma festa de música brasileira. Devo ser a pessoa mais jovem. Do lado de fora cai uma água cheia de névoa, e a vista do Jockey está borrada. Entretanto, lâmpadas feito archotes incendeiam em brasa. Cumprimento Janot atrás de um Mac, ao longo da noite vou lhe dizer que amo algumas das músicas que ele vai colocar, mas por enquanto apenas espero M. pegar a caipivodca. Recuso.
Horas depois, quando L. já foi embora, a pista esvaziada só tem o restante dos convidados de um aniversário. A mulher de conjunto cor de terra brilha tanto quanto sua roupa. Ela se agita por entre as pessoas como quem concentra em si, no meio do peito, um ponto de luz muito brilhante. Ao lado do bar, numa mesa, está o bolo cortado. M. e eu pegamos uns pedaços, que a aniversariante libera sem problemas. Está fazendo 43 anos, M. diz. Não sei como descobriu. Isso só acentua minha sensação de que poderia ser J. ali, três anos mais nova — três? —, dançando daquele mesmo jeito, com a mesma energia.
Depois penso nos meus aniversários. As vezes em que mal consegui reagir diante da possibilidade de celebrar estar vivo, e sempre redundava em comemorações ok com gente que, no fundo, eu não queria estar.
Isso — assim como eu mesma, no geral — só entrou num processo de mudança nos últimos, não sei, cinco anos, seis. Até a chegada de P. e L. era como se minha vida social boiasse num marasmo que eu repelia com o único instrumento conhecido: a violência.
Assistir àquela mulher dançando no meio da pista, rodeada de amigos, me fez pensar em como ela tinha acertado na escolha da festa, do lugar. Horas antes, M. e eu tentávamos descobrir para onde ir, se naquela ou na outra festa de música brasileira, no subsolo ao lado, também dentro do Jockey. Aposto que não teríamos nos divertido tanto caso a escolha tivesse sido outra. E eu também não teria escrito essa newsletter.
Quando cheguei em casa, exausta, vi nos stories de C. uma imagem que dizia, sobre a bandeira do arco-íris: “No one made me queer. I’m queer in spite of a world that did eveything it could to stop me from being myself”.
Eram quase quatro horas, meus joelhos doíam. Passou um filme na minha cabeça. Os comentários machistas, a retórica bélica. A adolescência. O despertar nos últimos anos como um gesto de coragem diante de tamanha tristeza. Lembro de quando E. admitiu no Twitter que tinha beijado — e gostava de — rapazes. Tenho a sensação de ter feito comentários horríveis, mas no fundo sentindo: queria ter essa coragem.
Comentei isso com V. há algumas semanas. Esse fato específico. E voltou tudo isso antes de dormir, o celular em punho, pensando: como é possível alguém mergulhar tão fundo no próprio horror só para não ter de lidar com o mundo?
O que me leva ao carnaval.
Dois.
Eu estava segurando o estandarte. L. levou para o bloco, tinha sido uma peça-chave no seu casamento, e foi parar na minha mão. Não sei, era como se devesse estar ali, um estandarte, comigo. Algumas pessoas pediram para tirar foto, outras sorriram, e eu pedi, por baixo da sensação gostosa de segurar um objeto tão nítido e visível, que não se voltasse para mim. O estandarte era de L., eu só estava segurando, muito embora houvesse algum pingo de vaidade. Tudo ficou mais fácil — e mais difícil — quando o bloco decidiu sair e, bem, uma senhora disse que eu deveria ir à frente segurando o estandarte, abrindo caminho.
Eu sempre acabo nisso, pensei enquanto pedia para os ambulantes irem para a beira da praça. Não demorou muito, havia um corredor iluminado. L. fazia parte da corda. Eu sentia a adrenalina correr pelas veias, o Rio de Janeiro, carnaval. Vinte minutos depois, subindo a ladeira, a banda tocou “Alalaô”. Inventei uma coreografia pro estandarte na hora. Subia, descia, girava, imitava um daqueles aviões da Esquadrilha da Fumaça que vi na praia quando era criança — as exibições, o exército como algo não vergonhoso no começo dos anos 2000.
Quando o bloco acabou, agradeci a L. e disse algo como “jamais imaginei fazer isso, mas gostei”. Ela sorriu e levou o estandarte consigo.
Ele era rosa, com detalhes vermelhos.
Dizia O AMOR VENCEU.
Três.
Eu devia ser a pessoa mais jovem da festa. Repito isso porque é importante. Fosse uma das festas recentes, na Matriz, por exemplo, eu teria tentado fazer algo para ser vista, para que desse em alguma coisa a saída numa noite de chuva. Mas como ali só tinha gente que decerto não iria se interessar por mim, relaxei. Estava diante de uma mesa, duas clutches em cima, quando pensei que me desapegaria de qualquer regrinha estúpida.
Ia aproveitar para fazer, sob a música tão boa, o que eu queria e nunca soube como, porque a memória disso sempre soava aflitiva: dançar.
Não fosse isso, esse desapego, eu não teria me divertido tanto. M. buscava mais caipivodcas, conversávamos ao pé do ouvido, dançávamos de modos completamente distintos. Eu pensava que confiar num homem era, de alguma forma, possível. Que nem todos — mas muitos — usariam a máscara que vesti com orgulho idiota por tanto tempo.Quando a festa acabou, fomos encontrar uma amiga de M. no lugar ao lado, onde rolava a outra festa. Ela estava com umas amigas e decidimos encerrar no Sat’s. Ao longo da saideira, a amiga de M. insistia que sua festa tinha sido melhor. Eu respondi duas vezes: estou cem por cento satisfeita. Ela riu. M. tentava justificar. Não precisava.
Era verdade. Eu estava satisfeita como há muito tempo não me sentia. A desobrigação do agir é a maior virtude numa situação social.
O que me leva a L.
Quatro.
Estou no alto do Terra Encantada, meu corpo a qualquer momento flutua no espaço entre o banco e a trava de metal. Do outro lado, o Cabum — ou seria o Martelo? — também produzindo ruídos de gritos. É o aniversário de alguém, acho que de M., um colega da escola, mas não tenho certeza. Ou estou com meu tio?
Não sei.
Essa memória volta agora. Estou no alto do Play City, o céu está cinza. Em breve desabará a chuva, mas agora tudo que existe é a brisa na suspensão enquanto o Barco Viking não desce. P. bota a mão no meu ombro, ou L. Sei que no instante seguinte desisto e grito. Lembro por um longo minuto por que faz mais de quinze anos que não entro num Barco Viking, embora me recorde de ser pequeno e adorar, gritar Barco Víquên, minha mãe ao lado.
Quando saímos, L. pergunta algo do tipo se eu sobrevivi. Peço para ela perguntar isso daqui a meia hora. Rimos. É seu aniversário, estamos num grupo de 7. Ela escolheu comemorar num parque de diversões em Del Castilho.
Antes de sair de casa, pensei se botaria a saia ou o vestido. Aquele velho pensamento de achar que longe da zona sul as coisas são diferentes — o que é uma bobagem, M. já disse várias vezes das práticas no subúrbio, muito mais aberto do que a ilusão dos corpos seminus na orla — máscara.
No shopping entre a estação do metrô e o parque, casais de mulheres de mãos dadas. Antes de ir embora, observando o carrinho de bate-bate, duas jovens abraçadas gritam para o garoto que está com elas. Sorrio. Sinto uma paz invadir meu peito.
Pegamos o metrô de volta. Nada acontece. T. também é uma pessoa não-binária, anda ao meu lado, quando conversamos eu penso na vez que nos beijamos e que alguém poderia nos ler como um casal. Gosto — menos por T., embora adore sua figura, seus gestos, sua calma de quem é de fora do Rio, que pela ideia de estar andando na luz clara, sem disfarce, sem sofrer as consequências do alvo que fizeram crer, o mundo faz, todos os dias, estar colado na minha testa.
Falei há alguns parágrafos do gesto de coragem nos últimos anos. Penso nas pessoas que sempre souberam, sempre bancaram, não se esconderam, estão aí até hoje, aparecendo. Me sinto um fracasso pela covardia do passado. Como se não tivesse direito de estar agora aqui, depois de tudo — e todas as conversas, os pedidos de desculpa. Algo permanece, mas não pode ser maior do que tudo
Então volta o carnaval. O sorriso no rosto de L. O vestido em Del Castilho. A dança numa festa. A desobrigação de agir, a necessidade de ser. Simplesmente seja, me disse M. outro dia. Como eu digo, navegar contra o mundo. Frase sobre fundo azul, arco-íris. O Instagram.
A máquina do tempo é um estandarte.
Carnaval, Rio 2023.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️
Que lindeza de estandarte. Adorei tudo. Belo texto.
Muito lindo seu texto