Semana passada um casal de amigos me convidou para assistir ao jogo do Fluminense contra o Botafogo na casa deles. No clássico anterior, contra o Vasco, o empate havia deixado um gosto amargo em nós, tão embalados pela sequência de vitórias do dinizismo, de modo que agora parecia uma boa oportunidade para reunir amigos, umas comidinhas, bebidinhas, jogar ideia fora e, quem sabe, sair com três pontos.
Tirando a vitória, tudo isso aconteceu, mas a melhor coisa — a que motivou esta newsletter — foi um grito que ouvimos em determinado momento. Ríamos alto quando, do lado de fora, ouvimos a palavra, em alto e bom som: Mateus?
Meus amigos moram num apartamento térreo, nos fundos de um edifício baixo, numa ruazinha pacata em Laranjeiras. Eu não conhecia ninguém que morasse ali, e estava muito feliz porque é uma alegria descobrir um novo território da cidade, algo que sempre esteve lá e você nunca visitou, decodificou, mapeou, simplesmente por falta de motivo que lhe fizesse ir.
Daí que todo mundo riu e fui para o corredor. Qual não foi minha surpresa ao reconhecer R. e seu cachorro maravilhoso, que eu só via no Instagram. Passada a perplexidade do encontro, voltei para o apartamento e tudo transcorreu normalmente. Até que mais tarde, quando fomos comer pizza, comentei que era inacreditável que eu encontrasse R. ali, sendo vizinha deles.
M. quis saber de onde a gente se conhecia, e expliquei que, por longos anos, R. foi a menina mais bonita da escola. Talvez hoje, na minha memória, ainda seja. Não sei em que momento desenvolvemos uma amizade, mas foi bem depois, pelo começo da última década, quando eu lia seus textos e encorajava — ainda encorajo — que fizesse algo de mais concreto com eles. Enquanto prestava atenção em M. e L., seu namorado, decodificando a vizinha pelas minhas informações, tive um estalo. Algo sutil que foi ganhando corpo nos últimos dias, de modo tão monumental que precisei escrever.
A rigor, meus amigos não vão saber que R. jogou vôlei numa manhã — ou teria sido numa tarde? — e que eu identifiquei nela tudo que eu jamais conseguiria para mim, naquela época. De forma muito consciente, para mim era como se aquela beleza, aquela forma de se relacionar com o mundo através de uma simpatia muito natural, não passassem de um anúncio do destino para mim. E não tinha a ver com um possível interesse romântico — creio que ele era bloqueado por esse exato sentimento —, mas com as camadas e peças que R. mobilizava no campo dos afetos sociais. Os amigos, o que eu pensava saber sobre seus afetos, sobre sua vida social — mais intensa, mais popular, mais aparentemente feliz do que eu jamais experimentaria ali, naquele colégio.
E é essa questão — o quanto a gente conhece das pessoas — que me fez escrever. Porque nos últimos dez anos em que posso me considerar amiga de R. não teve uma vez que tenhamos nos encontrado sem que eu pensasse: aquele dia, o vôlei, os cabelos dela, o colete vermelho. Ver R. é ver onde passei doze anos da minha vida, onde tive momentos felizes e desci às profundezas da mais insolúvel tristeza. E até hoje, como há algumas semanas, quando nos abraçamos na Casa da Matriz [sempre vou chamar assim, dsclp] por mais de um minuto num reencontro tão doce, tão bonito, ela ainda representa o antídoto para o veneno daqueles anos. Uma possibilidade. Alguém estava sendo feliz.
Mas M. e L. nunca vão saber disso. Para eles ela é a vizinha bonita, com o cachorro, que conhece alguém que eles conhecem etc. e tal. Eu tenho pensado muito nisso. Em qual é o instante exato que a gente gosta de alguém. Que amamos alguém. Que desenvolvemos um afeto — positivo ou negativo — por um semelhante, no sentido de que sabemos, a partir desse inexorável instante, que sim, queremos aquela pessoa nas nossas vidas, ou não queremos — seja como for. E como nunca vamos saber o que alguém representa para outro alguém. O que resiste depois da superfície.
Tudo isso que escrevi existe no rastro de uma reflexão que Victor Squella destrinchou em sua newsletter, semana passada. Achei o texto tão bonito, tão sensível — leiam o livro do Victor, “Sair da piscina”, poesia da mais alta qualidade — que me peguei pensando no amor. Nos resquícios.
Não sei se vocês também pensam isso, mas há algumas relações que, apesar dos ensinamentos, não eram pra ser. A pessoa era incrível, ou a compatibilidade realmente fazia sentido, mas o tempo deslocava para um lugar muito errado. E, no entanto, existiu. Daí a questão. O que fazer com esse arquivo que parece deslocado, desconectado numa temporalidade dupla — lá e agora? Não falo de uma perpetuação do amor, mas de uma hipótese. Fica a memória e ela tem materialidade. Na metrópole, nos bichos, nos espaços, nos livros. Os afetos afastados grudam como bombas que raramente disparam, só permanecem ali, grudados numa ameaça de detonação.
Esse pensamento tem um irmão gêmeo: o que é amor? Não é possível cair na tentação besta de negar que algumas relações não foram amor só porque não deram certo. Também não sei se é possível exibirmos algum tipo de conformação diante do que foi... feito e não recompensado? Quer dizer, negar o ego? Sim, todo dia, repito. E o que seria uma recompensa se amar, ter tido momentos felizes e depois seguir sua vida — nada pode ser maior que isso. Nada. A certeza de felicidade no passado é a alavanca da felicidade futura. Ela existe porque eu senti no músculo.
Escreve Victor:
“Mas nenhum dos amores que já senti, mesmo as paixões, nenhum deles foi semelhante ao outro. E não é possível descrever a diferença. Tampouco é possível entender essa diferença, mas há todo um léxico dentro dessas palavras como amor, paixão, felicidade, ciúme… do qual não temos acesso [...] Há uma ideia do que é [amor], mas é como se algo que não é de nossa língua escapou e está entre nós. Sei o que é amor mas não posso ir para o meio da cidade e apontar isso é amor.”
Hoje aguardo uma nova ideia de amor como quem lembra de algo que está nascendo de outra forma. É preciso aguardar essa gestação que não sabemos, não conhecemos os meandros. No entanto, insistimos. É preciso insistir.
Escrevo isso sobretudo porque o que senti diante de M. e L., contando de R., era também uma insistência no afeto. Que lá atrás eu insistia, sem saber que era insistência, e hoje tudo se conecta numa linha do tempo feliz, pessoas que eu adoro morando umas em cima das outras, um grande círculo temporal fechado sobre a memória. Que, no entanto, não termina. Nunca. Mas que eu gostaria que incluísse M. e L.
Acho que amar é compartilhar memória, mesmo. E ela está por todo lugar. Assim como a vida.
Entendendo a imaterialidade de que fala Victor, consigo apontar os afetos no meio da rua. Estão no prédio da escola que foi demolido e agora é um edifício horrível — a quadra e a visão de R. estão lá, assim como os gols nas noites de futebol segunda, quarta e sexta, depois da aula —, no terraço de um antigo cassino na Urca, na praça da rua General Glicério, no espetinho que fechou quase na Gávea, na rua Lauro Muller.
Assim como o Victor, não sei se consigo definir o amor. Mas sei apontar os afetos, que são a definição mais plástica e material desse falso invisível. Sei quando vejo um. Quando quero na minha vida. Do contrário, é neblina.
Improvisos de carnaval.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️
Estou impactado por esse texto. Me trouxe tantas memórias desses momentinhos tão particulares, mas que, para mim, tornaram mais fácil tangibilizar o que é amor. Que bom que eles existem.
amei <3