Terraleste #91 | O véu
Em que uma foto do Rio Antigo me faz compreender minhas obsessões — mas não só.
Há um eco toda vez que passo na Cinelândia. Eu nunca soube o que era até uns dias atrás, quando abri o Instagram com uma foto da Igreja de Santa Luzia, também no Centro do Rio, no começo do século XX.
Mas não só a igreja — a praia diante da igreja.
Por alguns anos, tomei o ônibus no Leblon e desci na Primeiro de Março, onde estudava à noite num curso de roteiro. Esse trajeto era inequivocamente marcado por obras. Faraônicas, na minha perspectiva. De um lado, o metrô abrindo a Ataulfo de Paiva, principal artéria no coração das Helenas de Manoel Carlos; do outro, a Rio Branco e o cheiro indissolúvel de fumaça, um ardor bolorento nos pulmões, cedendo lugar ao VLT, à modernização, dizia-se. Daí a Primeiro de Março, paralela, mais pra lá do que pra cá.
E antes da Primeiro de Março tinha a igreja. O edifício anexo à ABL, imenso, e a igreja. O post no Instagram me arremessou direto para aqueles dias. Aquele momento.
É uma paisagem relativamente famosa, se você se interessa pelo arquivo da fotografia carioca: o mar, a amurada e a igreja, que é a coisa mais nítida na imagem. Ao fundo, as montanhas. Porém o que me desnorteou não foi somente a visão das águas, mas a constatação: era uma imagem com duas fotos, cuja primeira era essa, a igreja e o mar, e a segunda era hoje em dia. A igreja hoje. Sem mar. Assim como não havia nas primeiras décadas do século XX, quando o aterro do Morro do Castelo mandou para as cucuias qualquer possibilidade de água.
Antes do Aterro houve o aterro. O desmonte. Sucessivos apagamentos.
E foi aí que eu entendi.
Eu não me interessava pela foto do Rio Antigo, e a beleza das fotos seguintes, crianças e adolescentes nos postos de banho, mergulhando em meio ao futuro de piche e fumaça; antes, era justamente o futuro de piche e fumaça o que me consumia pela sua possibilidade absurda. É quase um delírio ontológico de uma cidade. A existência divina. Sim, é possível que tudo isso seja apagado. Em um ou dois anos, uma paisagem toda consumida pela terra. Adeus às águas. Tchau. Adieu. Arrivederci. Bye.
Mas não acaba aí: o espaço em volta. O edifício enorme da ABL. O ar.
Eu fiquei maluca por causa do ar. Eu entendi a minha obsessão com a cidade, com as paisagens.
Porque veja só: existe a cidade, o mundo, o espaço físico de um trânsito cotidiano, chamemos assim.
E aí existe o ar.
Aquilo que está em volta.
E que é sucessivamente ocupado, como um palimpsesto.
Meu espanto não deriva do Rio Antigo, nem da obra do Rio Antigo; deriva da constatação de que ocupamos o ar.
Daí o eco quando passo pela Cinelândia.
Se você não é do Rio, saiba: existia ali um palácio. O Palácio Monroe. A sede do Senado Federal. Ele foi demolido numa união sinistra do Lúcio Costa com o Roberto Marinho com a desculpa de que obstruiria o metrô. Porra nenhuma. Mas demoliram. Ou melhor, desmontaram, pra ficar bonito. Ouvi dizer que pedaços estão em uma fazenda em Minas. Acredito.
Pois bem.
Daí que demoliram o Palácio Monroe, que era a antessala da Rio Branco, antiquíssima Avenida Central. Você entrava na Rio Branco pelo mar, ganhava o Centro, tinha o Palácio Monroe e logo depois... a Cinelândia. O Odeon. O Theatro Municipal. Enfim, tudo.
Sumiu.
E aí que toda vez que passo por lá eu escuto um eco. Amplíssimo.
Não é delírio. É o ar.
Quando olho para cima, tudo o que vejo são as figuras da Velha República andando por ali. A dois, quatro, cinco, quinze metros do chão. Passeando. Eles ainda estão ali. Não foram demolidos. Não se conformaram à sufocação que é existir um estacionamento subterrâneo onde antes havia um palácio, encimado por um chafariz.
E aí começa a obsessão secundária, que é principal, e que consiste em conseguir descobrir quais lugares daqui a vinte anos serão demolidos, quais novos ares ganharão pessoas andando, elevadores, orgasmos monstruosos na noite quando antes só havia um pássaro voando, uma partícula que se desprendeu do escapamento de um carro que ia pra São Clemente, um papel branco, um papel de plástico azul com motivos framboesa que envolvia a última bala Frumelo que masquei na vida, aquele gosto que nunca esqueci e provavelmente nunca mais voltarei a sentir enquanto engolir, aqui, este ar — de uma cidade que existe agora e nunca para. Mas lembra. Se inscreve sobre si mesma. Como uma bala. Uma. Após. A. Outra.
E o Pão de Açúcar ali, rígido, testemunha impassível do nosso véu.
Que protege. E guarda.
Duas dicas:
Leiam a newsletter da Carina Bacelar. É ótima. Eu amei esse texto.
Leiam a última newsletter da Camila Régis. Adorei conhecer essa história.
A cidade.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
Se você curtiu, me escreve. Basta responder este e-mail.
Se não curtiu, também me diga. É sempre bom saber como melhorar.
Beijos e até a próxima ❤️
ah amei! obrigada <3
(também tenho em possibilidades do ar desde domingo, só que)
amei topar com a minha lojinha aqui de novo. obrigada!