O som invade a madrugada. É como um vespeiro se mexendo e tanto faz se seco ou úmido, os bichos se movem pela Marina da Glória feitos de ternura e chuva. Deve ser uma e tanto. Ao meu redor as pessoas estão encharcadas. Diviso por trás do som a batida de estacas. Minutos depois, em transe murmuro Não é possível que isso esteja acontecendo. Aí choro. Lágrimas feito fósseis, ela diria mais tarde, quando não estivéssemos nos abraçando. Mas ainda sinto. Duras. Algo que sai meio desastrado — hoje em dia tudo não sai assim, meio desastrado, sem jeito, sem nexo? Espero. Quando acaba, é feito um parto, um princípio de parto, o revés. A lama domina os pés, as botas sujas, Gabriela me diz que está no lamaçal, no meio das redes, Amor, você não tá aqui, não, e quando nos encontramos o piso faz um squash squash na mistura de chuva, barro e — é estranho, eu sei, mas preciso dizer — lágrimas.
Agora é segunda-feira. Faz sol. Ontem choveu. Como naquele dia. Madrugada. Os restos de memória. Não é possível que isso esteja acontecendo, pensei e logo aquele homem, ali, parado, ouvindo. Não é possível, eu disse e ele riu como quem ri: É possível sim.
Maria Isabel se aninha em outras pernas. Ela sabe onde é melhor, diz minha avó. É possível. Ou talvez seja só instinto. Autopreservação. Espero. As pernas, o bicho, a língua áspera feito dinamite um milímetro após explodir. Escrevo — ela sobe na cama. Não é possível que isso esteja acontecendo. Espero.
O som invade a madrugada. É como um vespeiro se mexendo dentro de mim, úmido e seco. Dele sai o suco e o chiado insuportável, o gemido de bichos empilhados. Um após o outro — futuro, nós mesmos. Aguardo. O homem de vermelho toca seu pulso, profetiza o barco, diz que um dia tudo vai ficar bem, por baixo, enquanto eu penso Eu vou-me embora pro sertão, eu aqui não me dou bem. Onde é o meu interior?, penso. Indago. Quero não saber — se souber, eu mato. Cancelo o traço, apago os vestígios, recomeço.
O som me invade.
Os olhos varrem o horizonte — o homem de vermelho levita a mão.
Away.
Nessa hora, ou um pouco antes, o corpo úmido me abraça.
Maria Isabel tem os olhos um pouco mais brilhantes tanto quanto mais opacos. Termina de comer, abre a boca, fica lambendo os restos de cheiro ao redor dos lábios inexistentes, a pontinha, fragmento de preto no canto ao lado, bigodes rangentes, orelha em pé. Antes de sair puxo para perto. Seu corpo, meu corpo. Nós. Empilhadas. Ela me espera na porta, odeia a prioridade do teclado frente a nitidez de sua presença repousada no meu peito. É tudo ácido. Insisto. Insistimos.
Maria Isabel dobra a pata. E lambe. Como é possível não amar um gato?
O homem de vermelho parece improvisar a memória. O blues. A chuva voltou a cair, ninguém parece aguentar mais e eu quase me sinto mal de sentir tanta vertigem, por ver tanta beleza no meio daquilo — e desafirmações do destino, tem que ser assim, unir para depois fragmentar, permanecer a ti só o que sólido.
A memória fica em borrões. Mais os braços e o abraço que o som. O tátil. A chuva. Penso, lembro — água guamá iguape ibualama.
Agora.
Maria Isabel me encara. Seus olhos são dois kiwis opacos translúcidos, ferroados por alfinetes cor de caroço. O escuro de seu corpo desce como uma máscara, signo de Batbel, a Batguel da minha infância, eu repetindo na praia de Ipanema Batguel batguel batguel, Yvonne Craig na memória. Hoje sei o que era aquilo. Vontade daquele roxo. De brilhos.
O som desaparece na madrugada. A cidade dorme, alheia. Fico. Permanecemos. Na saída, subo num barranco. Caminho. A Glória à noite, sob chuva, é a mesma inglória turva de Machado, restos de Bentinho, Escobar e mar na amurada — aquilo que sacraliza, não permanece.
Aguardo os raios.
Sinto agora, dentro do peito, quando escrevo.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️
Fiquei presa no texto desde a primeira frase, agarrada até o ponto final... é mágia isso que tu faz.