Terraleste #93 | Camada
Em que vou à praia no inverno; lembro dos anos de tênis e visito uma pessoa — mas não só.
É inverno, mas escrevo na praia. Uma sombra cobre quase toda a extensão do Morro da Urca, e a frente do Pão de Açúcar brilha, amarelada, contra o céu azul da tarde.
Estou há dias sem meus aparelhos. Atrás de mim uma mulher fala coisas que eu certamente gostaria de ouvir, mas não escuto. Apenas deixo passar, como todo o resto.
O que você não apreende não é seu, ela parece dizer a cada sílaba que não consigo identificar. Capto as vogais, muitas letras A, e só.
Talvez seja assim que as coisas funcionem. Quando não existe algo a ser apreendido — a impossibilidade atávica das coisas — o que fica é uma matéria indiscernível. Uma massa. Que tento capturar e não consigo. Embora.
O carro dobra uma transversal e sobe a ladeira. Contorna. Passa por uma, duas casas, árvores mirradas, adolescentes, na beira das calçadas, e deságua numa amplidão média, que inevitavelmente conduz: ao supermercado; ao lago. Meu pai escolhe a segunda opção.
O mar da Praia Vermelha nesse domingo, o vento que sopra do mar na minha cara, me lembra desse mergulho. Uma, duas, três vezes. Incontáveis. Tinha algo ali. Uma massa. O Lago de Bracciano numa nesga à frente, a imagem sempre impossível do meu pai com sua pele bronzeada ao meu lado, dura, sua mão parecia uma lixa.
O vento sempre batia e eu me sentia um menino de quatro anos. A agência de viagens. A pizza no Harvey's. Batata frita chips e amendoim em potinhos de louça e um guardanapo; o Negroni no copo dele, um líquido vermelho — para mim parecia Gatorade. Mas Gatorade eu não podia. Ou não devia poder. Nem Nutella. E chocolate. Vocês e os doces, sua mãe tinha uma caixa de chocolates embaixo da cama.
Uma massa incognoscível.
A mulher atrás de mim parece ter ido embora. As crianças brincam na água.
Praia balneável, ela diz e eu sinto vontade de estar numa praia da Inglaterra em 1930, solucionando um assassinato. Morte minha.
Pauso a leitura do Michael Connelly, deposito no colo. Duas mulheres fotografam crianças. Sinto um medo — angústia — de que a qualquer momento uma delas vá passar correndo, me atirar um monte de areia.
Ontem vi um vídeo do Federer acertando bolas num amigo. Ele erra, ou finge que erra, e a bola pega no saco. Ele pede desculpas.
Lembro dos meus anos de tênis. O professor jogava bolas na gente quando fazíamos merda. Menos nas meninas. Minha amiga ria. Eu sabia que havia uma tensão, mas fingia não ligar. Porque não queria. Confirmei anos depois, com outra amiga. Me senti esquisita. A covardia da juventude.
Voltando às bolas. Tenho uma memória inventada dela se dobrando de rir, mas em algum lugar com pena. A certeza da impunidade. O ritual dos meninos. Passávamos por isso, estávamos condenados, porque merecíamos. Éramos o futuro. E a única forma de moldar o futuro é pela violência.
Também por isso eu não queria ser menino. Não queria ter direito a nenhuma violência. Mas eu queria rir.
Visito L. depois de um ano. A casa ainda é a mesma, mas ele não está lá. E ainda assim está. Fica. Permanece. Falamos en passant até que, torradas e geleia, requeijão, ela me flagra olhando o quadro ao lado da mesa. Quando ele ganhou dois prêmios, o Jabuti, o Nestlé. Eu estava pensando no que escreveria enquanto me dava conta de que ele estaria no lado oposto, sentado junto a mim. Falo isso, omito a parte da escrita. Só falo. Dele. Que é dela. Nós. O cheiro da casa não se altera. Ali eu não sou homem, não sou nada. Continuo saindo da aula e subindo os degraus de pedra, o décimo andar, a vista da baía, a luz do sol. Me anulo na presença dele. Dela. Quero sorver tudo, ser uma esponja. Deixar que todos os corpos se partam lá fora. Aqui é sagrado. Somos. Ainda é.
Abro o livro na página 98. A carta de Luiz Alfredo Garcia-Roza a Livia Garcia-Roza é a mais bonita carta de amor.
O ano era 1979. Ela tinha ido à Suiça visitar a filha.
Livia querida
Hoje, ao final da tarde, a saudade de você ficou mais forte. Tentei fazer coisas, arrumar livros, andar, e quanto mais imaginava artifícios para iludir sua ausência, mais sua presença se fazia forte. Achei que o melhor seria fazê-la presente – folheei o álbum de fotografias, li seus cartões... mas nada, nada atenuava a falta que eu sentia. Resolvi conversar com alguém que, de certa forma, estivesse ligado a você. Telefonei para o Roberto e a Ana. Roberto estava num ensaio e a Ana estava sozinha em casa fazendo as crianças dormirem. Eram nove horas da noite e resolvi ligar para você. O telefone tocou, tocou, e ninguém atendeu. E a saudade aumentou mais ainda. Queria te ouvir, te abraçar, sentir teu corpo, passar a mão pelo teu cabelo, queria te beijar, queria te amar. Comecei então a escrever. É uma forma de estar com você. O que tenho não é solidão, pois não estou só. Tenho pessoas a quem posso telefonar e estar com elas, enfim, as possibilidades de estar com alguém existem e não são difíceis. Portanto, o problema não é de solidão, é de saudade. A pessoa com quem quero estar e de quem estou sentindo falta é você. E não há substituição possível. Agora, são dez horas da noite. Vou estudar e depois me deitar, que é um dos momentos mais difíceis. Sinto que as cartas que estou lhe mandando têm um apelo coercitivo. ‘Volte’, é o que elas dizem. Mas sinto também que é injusto com sua filha porque vocês não se veem há algum tempo. Fica parecendo, então, que o peso maior é depositado sobre você. É você quem quer e deve ficar com ela, e é você que eu solicito. Mas não creio que seja assim. De certa forma, o tempo buscado com sua filha é valorizado pelo tempo deixado aqui. É porque você tem o que deixar é que pode procurar. E encontrar. Assim o meu ‘volte’ é também um ‘busque’. A procura do tempo perdido não é um esforço para recordar... o tempo perdido não é simplesmente o tempo passado: é também ‘o tempo que se perde’... é um exercício de aprendizagem, aponta mais para o futuro do que para o passado. Creio, pois, que você está fazendo a sua recherche, assim como estou fazendo a minha. E a saudade faz parte dela.
Com amor.
A sombra avança sobre o Morro da Urca. Os bondinhos se cruzam no ar. Beijam-se e vão rumo à estação.
Do outro lado, troncos muito finos se espetam no morro feito varas de pesca gigantescas. Arqueadas. A praia está quase toda na sombra, o que impede são pequenos riscos de claridade.
Odeio a tristeza que se abate sobre mim aos domingos. As bolas de tênis ao meu redor como facas num espetáculo de circo ruim. O fato de meus ouvidos produzirem muita umidade e isso ter travado os aparelhos, de modo que não consigo escutar.
Talvez a mulher não tenha dito nada importante, mas a massa da perda é maior. A camada que fica por trás de tudo, que não é inteligível — inescrutável, ele diria, é sempre maior. Rastro impalmilhável. Angústia da certeza intocável.
Por ela me desespero.
Seria pior não saber [?]—
E me liberto.
Vista do passado. Presente.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️
Lindo, curti muito!