Um.
Foi a primeira vez que mergulhei no mar sem medo. Nas idas às Cagarras, no começo da adolescência, sentia um pavor irremediável de não estar no barco; no Lago de Bracciano, a visão das algas atadas às rochas, cinco metros abaixo do meu pé, era o suficiente para me transformar numa criatura paralisada em cima do barco, meu pai controlando as cordas e a vela enquanto dava risada.
Agora não. Depois de anos sem cair em alto mar, ou altas águas, simplesmente pulei. Uma, duas, três, quatro, cinco vezes.
Existe algo de intransponível em estar no meio do oceano e ver uma cidade existindo a trezentos metros de distância, imponente, nem aí para você. É diferente de sobrevoar. O avião oculta algo fundamental, que é o movimento. Tudo que voa desmancha o movimento no ar.
Aqui, não. Você simplesmente fica. Abre o olho, observa enquanto a noite cai na Baía de Todos os Santos.
Quando Marccela e Filipe comunicaram que iam se casar em Salvador, fomos tomados por uma euforia. Um certo desespero, acho, pela viagem, essa coisa de sair do lugar, mas que não durou. Quer dizer, eu me desesperei. Viajar. Casamento. Amor. Não durou. Quer dizer, não poderia durar. Não sabendo que estaríamos nós, amigos queridos, juntos na Bahia. Para celebrar nossos amigos queridos, que moram em Berlim, e era como se alguma parte muito nossa tivesse se desprendido, um imenso iceberg. Eu fui até lá. Fiquei com eles por uma semana. Mas não era a mesma coisa. Fazia frio. Era outro mundo. E não era o Brasil. Faltava a alegria. Daqui.
Após a longa fileira de postes acesos, um colar de pérolas menos oblíquo que Copacabana, reto pela certeza da beleza, dois prédios piscam em sincronia suas luzes vermelhas. No barco, todos dormem ou conversam baixinho. Luli escolheu a música o dia todo, e agora parece que estamos numa festa na Matriz. Só que longe de casa. Daí o carinho.
Respingos de água lambem meu rosto, o vento é fresco e não sinto frio. Nina usa minha chemise. Uma onda arrebenta no casco e fico com a cara úmida. Ao fundo, um grupo conversa, em roda. João me diz para botar o short. Sou a única pessoa ainda de sunga. “Meu espírito agora é sunga”, digo a alguém, e é real. Após uma vida usando bermuda para cair na água, usar sunga me devolveu certa liberdade em relação ao meu corpo. Eu não queria ter que me esconder. Não quero. Os pelos. A cicatriz. Esse corpo que não é nada. É só um corpo. É tudo.
(Talvez por isso tenha ficado seminua durante o passeio de barco. Até o fim.)
Dois.
O sol cai no Porto da Barra. Penso o tempo todo em "Qual é, baiana?". Estou aqui, não é domingo, mas estou. Amanhã meus amigos se casam. Uma mulher ao meu lado se irrita com os rapazes jogando altinha, diz que eles estão tapando o pôr do sol. Faço coro. A bola de fogo logo vira uma meia-lua que desaba no horizonte. Os contrastes se acentuam, mas também se derramam na paisagem. A alguns metros da areia, lanchas abrigam pessoas que assistem ao lusco-fusco. No que parece um píer muito antigo, adolescentes se atiram na água. Passarinhos voam. Bate um vento fresco. Quando o sol enfim desaparece, todo mundo aplaude. No Rio, em Salvador. Bato palma porque não estou em Ipanema e quero a experiência. Um aplauso. E também posso chorar. Mas escolho o sorriso.
Aos poucos as barracas somem, ficam só as cadeiras, as pessoas que se vestem. É tudo muito rápido, mas dá a impressão de ser devagar. Vendedores de queijo coalho, cerveja, uma Lulu da Pomerânia chamada Zoe, muito branca e cuja língua não esconde nenhuma aspereza, antes, é uma bala riscando o meu dedo.
Meu amigo diz que esse é o pôr do sol mais bonito do Brasil. Uma nesga de areia, mas ali está o mundo. É como se a praia da Urca fosse boa, digo a uma amiga. Ou talvez seja mais que isso.
Provavelmente é mais que isso.
No primeiro dia, quando fomos comprar as coisas para o café, vi dois sujeitos de sunga no mercado. Pensei que não estava tão longe assim de casa. Uma ida ao Zona Sul.
Comentando com João, ele disse que isso não era muito bem visto, na Barra. Penso nele enquanto levanto, guardo o livro na mochila, dobro a cadeira e subo as escadas rumo à balaustrada para ir ao mercado, chemise vermelha na mochila. De sunga.
Na entrada, o segurança me pede para botar ou camisa ou short. Visto a chemise, mas penso na lógica. Algo precisa ficar escondido — não é assim com as melhores coisas?
Digo, é?
Quando chego ao prédio, vou na ducha lavar a cadeira, os pés. O chuveiro inflama um arco-íris na noite baiana. Noite de vento que abraça aos sopros.
Três.
Não sei com vocês, mas a cidade sempre me acha. Não é imediato. Leva tempo. Leva dias. Um monte de experiências se sobrepõem e penso Não é isso, tá frio, tá quente. Em Roma, por exemplo, em 2016, pedi informação às duas da manhã para uma mulher na praça do Pantheon e testemunhei a maior beleza da vida. Ou uma das. Hoje. Escrevi sobre ela aqui.
Em Salvador, foi a rua Chile. Pouco me importa o que veio antes — passeio de barco, mergulho no mar, sotaque. Me vi engolida por Salvador numa tarde abafada em que decidi conhecer o Pelourinho.
É assim.
Por acaso, encontro dois amigos e combinamos de dar uma volta antes de sentarmos para almoçar. Desço até a praça Castro Alves [“A praça Castro Alves é do povo/ Como o céu é do avião”] e então acontece. Como sempre.
Na subida da rua Chile, depois da praça, há um prédio em reforma. Pendurado a vinte metros do chão, um sujeito toma esporro de uma mulher baixinha, do outro lado da rua. Você errou a marcação, ela diz. Debaixo da marquise, um pedreiro de uniforme azul observa. Arqueio a sobrancelha como pretexto pra rir, mas ele ignora. É começo da tarde de sábado, estamos em uma rara zona de sombra.
Uma caminhonete estaciona atrás do Doblô dos Correios, na qual, ao volante, um sujeito aguarda a parceira fazer uma entrega num edifício de escritórios onde uma mulher está sentada nos degraus. Ela conversa com o porteiro, muito confortável usando chinelos.
Aqui fora, o pedreiro começa a descer os tijolos da caçamba da caminhonete e o motorista me fita, impassível. Do outro lado da rua, de prancheta na mão, a mulher ainda encara o homem pendurado.
Um sujeito de blusa amarela entrega uma quentinha ao motorista.
Quero ficar aqui pelo resto da viagem, contida no espaço de alguns minutos. Poucas pessoas andam na calçada, alguns carros passam. Apesar do sol nas pontas do caminho, sopra um vento gostoso. Vento de férias. Vento de Brasil. Berlim não tem isso.
Estou em Salvador e na Gran Vía de Madrid, em 2019, o calor abafado, a ameaça de chuva pelas próximas horas, a sensação de que a cidade não passa de um emaranhado. Próximo ao Elevador Lacerda, uma estátua humana senta na cadeira de plástico e acende um cigarro enquanto mexe no celular.
Adiante, ainda no fascínio pela figura prateada, me detenho em um prédio em cima da Banca do Rasta. Imagino viver em um apartamento ali, a fachada de esquadrias como o edifício Central na Avenida Rio Branco, e penso num imóvel sem divisões, um enorme loft bruto com colchão, TV, estante, um gato que flana com Salvador lá embaixo, lá fora, por testemunha.
A cidade sempre te encontra.
Quatro.
Noite, véspera do casamento, decido comer no McDonald's. Boto uma blusa branca que me emprestaram e, como esqueci a saia no Rio e não quero usar o vestido, pego o short azul. E vou.
É estranho comer sozinha numa cidade que não é a minha, tanto quanto é bom. Parar. Olhar as pessoas. Observar o mundo e como flutua. Estou disfarçada. A qualquer momento vou entrar por uma porta e sair de vestido, olhos delineados, batom, brincos. Meu rosto no reflexo do carro não mente. Liso é sombra. Lynda Carter c’est moi.
Na avenida sopra uma sirene.
Venta.
Cuidado.
O casamento é lindo. A chuva desaba e recito para Ana Helena o mónologo do carioca puto na enchente. Ela escuta com uma cara de confusão. Acho graça da patetice, mas não mostro. Depois dançamos. Todo mundo. Os noivos. Meus amigos. Chorei litros na cerimônia. Os discursos. As alianças. A certeza da beleza que não reside apenas no gesto, ritualístico, mas no ato de estarmos ali, compartilhando a mesma sensação. O amor é bom pra caralho.
Domingo.
Muitas pessoas vão embora hoje, outras, amanhã. Algumas, de madrugada.
Partimos para a casa da noiva. Chove. Ficamos na sala vendo fotos em álbuns de margens escurecidas pelo tempo enquanto penso na discoteca da minha mãe, na qual a única prateleira com discos é a última, todo o resto está cheio de fotos, minha mãe no nordeste nos anos 1980, meus pais antes do meu nascimento, os primeiros registros da minha infância, de toalha branca em Roma, os passeios de escola. Sinto o cheiro do plástico, do filme. Tudo ali. Tudo aqui.
Mas antes.
“Quero ir na Barra dar um mergulho.” Frases que nunca pensei que fosse dizer.
“Domingo no Porto da Barra” etc. Na voz de Gal. Ou Caetano. Tanto faz. Saí da água e tinha um garoto meio assustado na margem. Falei Pode mergulhar, a água tá boa.
Assim?, ele disse e mergulhou tapando o nariz.
Mergulhei furando a água. Assim também, respondi.
Eu não sei nadar, ele sorriu, constrangido.
Fiquei um pouco em silêncio, depois falei: Relaxa, por aqui tá suave, e apontei para a beira.
Ele olhou por um longo instante, como medisse a profundidade. O mar estava calmo.
Quantos anos tu tem?
Dez.
Ah... Mas mergulha, aproveita. Dá pra fazer assim no raso.
Ele hesitou. Então furou a água. No raso. Fiz um joinha. Aí ele sorriu e disse: Valeu, professor!
Depois.
Começaram a bater palmas. Uma criança se perdeu, disse uma mulher atrás de mim. Veio o garotinho, de uns três anos, acompanhado do salva-vidas. Todo mundo bateu palma e então a mesma mulher gritou É o Arthur! e começou a rir, gargalhar, o marido dela também, mostrava os dentes branquíssimos e todo mundo ria, inclusive o próprio Arthur, que usava uma sunga com estampa de girassóis e saiu correndo pro mar.
Ao longe, contra o sol despencando no horizonte, sombras de meninos desapareciam na água.
Seis dias — de muita alegria.
Atenção — duas recomendações:
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é meu xodó. Tem uma beleza, uma densidade, um olhar pro mundo que. Sei lá. Só assinem. Das minhas cronistas preferidas <3É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️
Obrigado pela simpatia da nota, Mateus. Vou ler a sua Bahia e seus mares agora
obrigada, amor! lindo relato, como sempre <3