Se você entrar, vai ter duas opções de caminho: à esquerda, passando o corredor das mesas de ping-pong, com bancos retangulares de tijolo e ripas de madeira, ao fundo, dobrando a extensão da secretaria, existe uma passagem por dentro, e, numa linha reta, você vai chegar lá; mas se quiser ir reto a partir da entrada, depois da mesa do seu Alfredo e dos bancos e da enorme árvore, da casa, do antigo parquinho de areia que agora é só um parquinho de concreto com um escorrega de madeira e cordas imitando um castelo com outra árvore ao lado, e virar à esquerda na quadra, na outra ponta, atrás do outro gol, também vai chegar lá.
Uma vez lá, você vai respirar fundo e sentir um cheiro bom. Não bom como perfume, mas bom como algo que te acalma. Que te diz que muitas pessoas existiram antes de você e sobreviveram. Antes de você e de mim, a criança sentada na cadeira, desesperada porque não pode sair de lá. E lá é a Sala da Liginha.
Não lembro a primeira vez que me mandaram praquele lugar. Ficava depois da coordenação, antes da sala de música, essa sim com um cheiro forte de ar-condicionado, gelo que cortava as narinas por dentro, o excesso de metal dos instrumentos, e desde o princípio senti uma identificação. Era pequena, dava para ver a quadra [os gols eram marcados a quatro metros da porta] e dentro havia um almoxarifado — ou assim me lembro.
Na parede atrás da mesa, oposta à entrada, havia uma placa escrito Sala da Liginha. Era de madeira escura e lembrava aquelas na casa do meu avô, na área da churrasqueira.
Então é assim. Tem a placa. A mesa. Umas cadeiras onde minha mãe ouviu reclamações fortíssimas da coordenadora. E eu. Nessa tarde, que é uma tarde qualquer, de sol, abafada, as pessoas jogam bola e eu não, o que me desespera. Fiz alguma merda e estou lá. Ou então ninguém joga bola e a visão da quadra vazia também me desespera. O fato é que sim, estou. Quero sair e não posso. No fundo da quadra — ou no começo — está a parede e a árvore da qual caí em 1999; e atrás dessa parede, o prédio da minha avó, que nessa época é o meu, e de cuja janela as vizinhas me dão tchau quando corro indiferente à bola.
Da Sala da Liginha vejo tudo isso. Uma vez perguntei quem era ela e disseram que foi uma coordenadora, acho que daquelas coordenadoras lendárias. Tinha morrido havia pouco tempo. Depois outras pessoas morreriam. A morte do seu Alfredo me devorou por dentro (“quem é meu parceiro?”, dizia ele quando eu chegava vestido de Batman e ele se dizia o Robin, lembrança que me engolia, rasgando, quando ele me dava esporro, anos depois, e eu entendia que tinha me transformado numa espécie de criatura muito distinta da que haviam pensado que eu me tornaria, daí nossas conversas, ele com alguma paciência dizendo que eu tinha que tomar jeito etc., e o subtexto era: as coisas vão se resolver, você dá muita bola pra esses moleques, e eu só tinha doze anos, mal sabia respirar, dar bola pros moleques era a única coisa que eu achava que devia fazer pra não acabar sozinho na grande Sala da Liginha que me parecia ser a vida adulta).
A Liginha era uma coordenadora tão lendária que estou escrevendo sobre ela sem nunca ter visto o rosto. Também não lembro afirmativamente do cheiro, mas era algo como perfume, caramelo e cigarro. Doces. Madeira. Só sei que era bom. E que ainda sinto. Aquela certeza. Outras pessoas vieram antes de você, as coisas têm história, tudo está conectado.
Acho que foi ali que comecei a pensar que a vida tinha alguma complexidade.
De modo que.
Escrevo isso porque semana passada li “Vale o que tá escrito”, de Dan, publicado pela DBA. É um livro policialesco no que isso tem de melhor como projeto, embora o excesso de devoção à literatura, numa chave metalinguística, distancie o leitor da narrativa em alguns momentos cruciais. Mas o livro é bom. E vale a leitura. De modo que há uma cena, logo no início, em que um moleque toca o terror na escola e os pais são chamados. Mas antes ele vai pra sala da coordenação e aí vocês já sabem.
Eu não tinha escrito um conto erótico envolvendo as três coordenadoras da escola, mas fiz muita merda para uma criança de doze anos, a ponto de, até os catorze, ter sido suspensa nove vezes. A narrativa de Dan me devolveu àqueles anos, por algumas páginas, em dois cenários diferentes: a sala da dona, no segundo andar, ao lado de um banheiro cor de rosa lúgubre e lindíssimo tanto quanto poderia ser um banheiro de escola dos anos 1950 lúgubre e lindíssimo, com uma bandeirinha da Grã-Bretanha em metal, acho, afixada à porta, e a Sala da Liginha. As duas salas para onde fui mandada na hora do esporro, tirando a coordenação. E assim fiquei até a tarde de ontem, quando não consegui desviar e fui até a escola.
A construção foi demolida em 2009. O colégio se mudou para outro bairro e deixou para trás o casarão com os bancos de tijolo e assentos de madeira, as árvores, a areia que eu gostava de escavar no recreio e depois foi soterrada pelo cimento, as almofadas verdes da sala de TV que me deram trocentas alergias de olho e muitos algodões com soro fisiológico, os corrimãos enferrujados do salão com piso de mármore branco, algum detalhe rosa, a acústica de eco, sobretudo a quadra e os gols que fiz, mas principalmente aqueles que perdi.
Ergueram um prédio, claro. Bege, vidros verdes, portaria de pé-direito altíssimo. O terreno baldio em frente virou um edifício enorme. Nildo e suas balas não estão mais na calçada. O caixote branco do Carlos, com balas e bebidas, está lá, mas o Carlos e seu carro, com o qual levava e buscava as crianças, não. No prédio azul junto à escola, no muro ainda azulíssimo, se olhar bem eu vejo a espuma que joguei no carnaval de 2001 ou 2002. O burburinho de que ali vivia um coronel que desceu irritado porque alguém manchou seu carro com a espuma. Eu amava a espuma.
Me aproximo com calma. Estou sem óculos, na mão carrego uma sacola de mercado com a comida do jantar e uma caixa de antialérgicos. É tarde de segunda-feira, faz sol, mas o ar é respirável. Há uma senhora sentada diante da portaria.
A fachada é vazada, isto é, não tem mais os dois portões pretos, um em cada ponta, e o enorme muro amarelo, com o nome e a logo da escola esculpidos em baixo relevo no concreto. Agora tem um portão gradeado em cada canto para os carros, e uma garagem subterrânea. No meio, entre o vidro transparente, a porta de entrada.
A senhora me vê. Provavelmente me acha esquisita, olhando para dentro do prédio, assim. Refaço, pisada por pisada, o trajeto. Seu Alfredo está carimbando as cadernetas sentado à mesa de fórmica um pouco antes da rampa de descida para a garagem; ali ficava a árvore onde vi um dos garotos bonitos da oitava série tocar no violão algo que à época me lembrou a música do Zorro com Alain Delon e o deixou desconfortável porque não, ele nunca tinha visto o Zorro com o Alain Delon, ninguém num raio de cinco anos, para mais ou para menos, tinha visto o Zorro com o Alain Delon. Nem o Flash Gordon de 1936. Nem o Capitão Marvel de 1941.
Do outro lado a garagem segue em linha reta. Olho para cima, tento calcular se onde ela acaba também termina o terreno. Não pode ser, a quadra não era tão perto da rua. Se a gente tinha que dar tanta volta. Se existia tanta criança. Existem. Estou aqui. Meus olhos doem, dardos os furam por dentro, saio da Sala da Liginha e ignoro a coordenadora gritando, eu vou te mandar pra casa, me dá o telefone da sua mãe, passo a cantina, sigo pelo piso de pedra com rejuntes de um plástico azulado, a saleta de reuniões com computador, algo acessível naqueles anos em que toda essa tecnologia era coisa do futuro, o outro antigo espaço de areia, agora concretado, o box onde no jardim de infância tomávamos banho, a casinha em que meu amigo ficou cantando “Meu erro” na quarta série porque a garota que ele gostava não gostava dele, a minha sala de aula, os fundos da secretaria, passo tudo e derrubo o muro, me encontro diante de mim, ela. Espero.
Então vem a retroescavadeira e o sol desaparece.
Tem horas que.
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Coisa rica!
Ainda quero fazer um texto memorial pro colégio onde cresci. Sua descrição da sala da Liginha me levou pra muitas salas do colégio São José. Obrigada por compartilhar suas andanças sentimentais, querida. Beijo