Terraleste #97 | Dez tons
Em que uma cantiga de ninar, o calor e a crocância se impõem — mas não só.
Um.
São dias quentes. O ar-condicionado não dá vazão, tudo parece mergulhado numa umidade despropositada, milhares de flocos de suor grudam na pele, nos cabelos, nos pelos, postes, prédios — uma cidade mergulhada em suor gorduroso.
Ao longe, as gaivotas planam.
Dois.
Tenho ouvido muito o disco homônimo do Humberto Effe, de 1995. Vocalista dos Picassos Falsos, minha banda brasileira favorita, ele fez de seu primeiro álbum solo algo incrível, cheio de texturas, de alguma forma ampliando o projeto estético iniciado com os Picassos, em 1987, e solidificado em Supercarioca, de 1988, um petardo sobre Rio de Janeiro, chuva e samba: se lá misturavam Jimi Hendrix e Ismael Silva no mesmo disco, no momento em que o rock brasileiro privilegiava os moldes gringos, em 1995 Humberto grava João Bosco e Aldir Blanc, e ainda Bezerra da Silva em versão metal, sampleando Body Count.
A última faixa, “Paradise”, montada sobre flautas, é minha preferida. Uma pequena joia de beleza, com letra deliciosa. Mas não é dela que quero falar. Em “Mancha”, a quinta música, Humberto diz: “Fico me aproximando da terra com vida/ Vendo um objeto vermelho/ Surgir no teu corpo crocante/ Como um espírito encarnado/ Em meteoros constantes/ Que rasgam minha roupa/ Até tocar sua pele/ Manchando o teu corpo e sangue/ Com minha salvação”.
Há anos, ouvi essa música, minha mãe estava passando e riu, corpo crocante? Voltei a pensar nessa cena agora. Mais: a ideia de um corpo crocante. Me esforço, mas não consigo elaborar. No entanto, sei que está. Algo na possibilidade de quebra. Na ruptura do que está dentro do corpo.
Três.
Ando pela cidade como quem vai comprar pão no supermercado às oito da noite (eu vou ao supermercado comprar pão às oito da noite): sempre torcendo para encontrar algo crocante.
Quatro.
É. Talvez seja isso. Buscar o entusiasmo.
Cinco.
Estou rolando na cama. Semana passada fui à casa de uma amiga, segurei no colo sua filha de cinco meses. Em algum momento, durante um princípio de choro e/ou agitação, comecei a cantar “Um tom”, do Caetano. Ela acalmou. Agora é noite. Faz calor. Jogo no YouTube Caetano cantando “Um tom” na turnê do Cê, circa 2006. Na plateia tem uma pessoa solitária que bate palma na hora do “tanta coisa que cabe”, como se fosse a única que conhecesse. Não demora muito e outras batem. Na introdução da música, Caetano cita a banda de Transa, mas ninguém aplaude nem grita com força. Penso no show do Transa, quase vinte anos depois. A turba. A consagração. Aqueles jovens de 30 anos estendendo seus 80 na beira do público. Nunca ter vergonha de bater palma e se entusiasmar.
Seis.
Ando viciada em “Eu só quero um xodó”. Algo na melodia. O vídeo do Caetano, em 1973, no auge da doideira lúcida — até hoje muito incompreendida — de Araçá azul, cantando a música até antes do refrão sozinho, com o reverb. É lindo.
Sete.
Maria Isabel está parada no canto da cama, feito uma gárgula; ou então em cima da geladeira, observando por cima do biombo. BatBel. Agora são 3h. Quero dormir, mas não consigo. Lá fora faz um calor monstruoso, o ar-condicionado não funciona bem; Maria Isabel se isola no canto da cama e, após uns pedidos insistentes da minha parte, decide vir. Deita na dobra da minha perna, rotina, e se lambe. Faço carinho, ela rechaça. Depois tento de novo. Ela aceita. Faço leve, na velocidade do ar que nos chega, uma camada de conforto por cima de todo o suor. Gatos são sensíveis, não são cachorros, você tem que fazer assim, ó, de levinho, me dizem antes da pandemia. Todo dia tento aprender a lição. Maria Isabel se cansa da minha perna e vai para a almofada. Quando durmo sozinha, ela fica a meu lado. Sobe na almofada e deita. Dorme. Eu não. Ainda demoro, escrevo isso no celular, penso no dia seguinte, sinto dor na perna. O calor. Não tem para onde correr.
Oito.
Não há crocância no calor. O motor do ar-condicionado emperra, o estômago dói, me sinto cozinhando por dentro. Pego o metrô e o simples fato de estar na porta, sob o ar-condicionado fortíssimo diante do bafo opaco do lado de fora, é suficiente para me dar vertigens. No entanto, nada é cancelado. Pessoas andam nas ruas, trabalham, estudam como se não. Sessenta graus de sensação térmica é uma sauna, diz um amigo no Instagram. Lembro de semanas atrás, quando entrei na sauna com uma amiga. Quase desmaiei. Desmaio também. Agora. Por dentro. Quando olho para baixo, Maria Isabel está completamente esticada, peluda, mole. Me alivio. Um segundo depois, me desespero.
Nove.
Isso não é um retorno.
Dez.
“Tanta coisa que cabe, tanta pode caber, canta e pode fazer cantar, nova felicidade, novo tudo de bom, deixa-se cantar um tom.”
O brilho.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️