Um.
É meio de tarde, ou final da manhã. Não dá para saber porque o frio arde igual. Ainda não houve o episódio dos gêiseres, as luvas esquecidas no hotel, os ovos cozidos na água pelando enfiados nos bolsos do casaco para espantar os menos dezessete graus. Tenho dezoito anos. Estou no meio do Valle Nevado. Ontem caiu a primeira neve, chegamos na recepção do hotel e pedimos para trocar o passeio às vinícolas por uma possibilidade de reencontrar o gelo, sete anos depois. A recepcionista se perdeu nas sombras, vejo só a madeira na luz opaca, mas está lá: ela nos informa do passeio novo, as curvas, o gelo.
Topamos tudo.
Está nublado. Quando nos aproximamos do destino, o ônibus para e descemos numa espécie de nicho. Pessoas tiram fotos, ou só eu que me jogo mesmo. Ele filma. Filma e sorri porque sorrio, porque vejo neve pela primeira vez com esse pai, não com o outro, sete anos antes, e portanto tudo é diferente. A neve. Eu. Hoje.
Nas fotos, meus dentes parecem dois blocos de gelo escovado, rígidas penumbras cegas na superfície de um rosto imberbe, óculos retangulares sem armação — armadura —, os cabelos que ainda não começaram a cair escondidos sob o gorro, macio. Tudo é macio. Ainda não tiveram as grandes lagunas, a foto espichado lendo Dennis Lehane só para fingir que não estava frio.
Estava.
Entramos no ônibus e quando enfim chegamos ao Valle, a visão da estrutura faz eu me sentir em 007 A serviço secreto de Sua Majestade. Acho que nunca vi até o final – porque não tinha o Sean Connery nem o Roger Moore, lembro da época, porque George Lazenby durou só um filme. No entanto, sei do final. Talvez eu tenha visto até o final e só lembro disso, o final, o carro passando e vum! — as metralhadoras. Pode ser.
Sei que no Valle Nevado só resta lembrar. A neve parece diferente, distante, insossa. Tudo que caiu é recente, então a memória do gelo permanece como um enorme travesseiro que se estende pelas montanhas, o teleférico parado. O gelo ainda está muito fofo, o guia explica, não pode esquiar. Ainda não há Bariloche nos anos seguintes. E depois.
Tem eu. Ali. Aquele corpo de dezoito anos, viagem de presente, meu pai, nós dois pela primeira vez em outro país juntos, sem a presença. Sem que. No entanto, fica. É outro tempo, tudo está desfeito, mas fica. Dura. As idas ao shopping, o ciúme dos novos. É ridículo, diríamos a eles, não faz sentido. As coisas que doem e não são ridículas.
Dois.
Filipe Catto me abraça e diz que. Escuto. Vibro.
Há quarenta minutos ela estava dançando pelo salão, os seios cobertos por um pano fino cujo centro é um aro.
Penso na ideia de arco. Lembro, enquanto escrevo, da visão: bota o arco, pra prender o cabelo. Seu cabelo é tão bonito. Vai jogar futebol.
Cuidado para não ficar careca igual.
Cuidado para não ser.
Endireita.
Não.
Assim não.
Não.
Três.
Maria Isabel pula em cima da geladeira e fica me esperando. Torre de observação. Me aproximo para dar um beijo, ela se esquiva.
Admiro de longe.
Estou subindo a montanha.
Quatro.
Não parece, mas faz frio. Agora já não arde, engraçado. Fica só aquele monte de facas, metal, gosto de metal, uma parede por todos os lados me dizendo fica, fica, fica, e enxergo o montículo, o montículo de neve, subo, aperto a neve com o peso das botas, deixo que meus tornozelos massageiem a água ao redor, a brancura, o horror, a primeira neve do ano torna tudo mais difícil, é preciso que seja repisada, triturada, mastigada, como tudo, não é tudo, não é assim, destruir, penso, preciso destruir, não agora, que já não penso mais nada, que já não quero destruir nada, o cérebro uma papa, mas a memória do gelo é traiçoeira, diz, vai, escala, porque é uma escalada a subida, abrir os poros a navalhadas, o vento nos lábios, ainda não sabe que será muito pior, os ovos nos bolsos, a história repetida mil vezes ao longo dos anos, todo o percurso, os vestidos, não sabe nada, por isso quando chega ali em cima tudo fica escuro, parece que, interno, desaba. Não. Fica em pé. Fico. Mas dói. Meu pai filma com entusiasmo. Um peso absurdo verga meu corpo, sobre minha nuca. Desço. Rolando talvez seja mais fácil. Não rola. Saltos. Vou até a estrutura de madeira e pego um Nescau.
Ou talvez tenha confundido e isso é em Bariloche.
Cinco.
Tomamos um açaí. O primeiro encontro do ano. Não pergunto como saímos do gelo porque não me ocorre. Não lembro. Ele não lembra. Não vai lembrar. Agora me ocorre. Como saímos do gelo. Indago. Espero.
As coisas giram.
Sei do monte no frio, sei da foto espichado lendo Dennis Lehane — agora eu diria espichada —, sei dos ovos, os gêiseres. Mas—
Seis.
Cientistas têm medo de que o aquecimento global conduza ao derretimento do permafrost, o que liberaria uma quantidade inacreditável de vírus presos no gelo desde o início do mundo.
Apelo às trevas é um bom livro — a adolescência.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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