Terraleste #99 | Uma criança no tribunal
Em que assisto a Anatomia de uma queda e lembro e o mar — mas não só.
Um.
Assisti a Anatomia de uma queda. Quando acabou, entrei numa espécie de transe. Nas redes, todo mundo falava da ambiguidade, as atuações, o cachorro, sobretudo o casal — a dinâmica das relações heterossexuais, a diretora Justine Triet: a cena da discussão é uma resposta à discussão em História de um casamento, na qual Adam Driver se vitimiza horrores, baita cena, baita resposta —, mas ainda não era isso. Não podia ser. Porque, eu pensava, essas questões estão aqui e ali, de algum modo. O que difere esse filme dos outros é a intensidade. E justamente a intensidade do que eu sentia me deixava claro que não, nunca poderia, para mim, ser um filme sobre dinâmicas de casal. Não no fundo.
No fundo, o que gritava era o garoto. Deficiente visual, uns doze anos, precisando testemunhar num tribunal com os pais em lados opostos — um deles, ali, morto.
No meio do filme, achei que não devia demonstrar o desconforto porque era impertinente, porque já tinha passado. O moleque estava na tela, depondo, todo mundo tomando cuidado com suas palavras, com sua integridade, e o moleque era eu, vendo, dezessete anos e meio depois.
Em julho de 2006, entrei num tribunal em Roma. De um lado, meu pai. Do outro, minha mãe.
Dois.
O mar de sábado está estupidamente morno. Convoco porque sei que é a única saída possível. Logo eu. Água. Mar.
O sol se esconde atrás do Dois Irmãos abrindo um leque alaranjado cuja superfície plana por cima do céu azul.
As ondas vêm como gigantes, chegam crianças. Digo fura e nisso está a infância. Meu pai brasileiro está me olhando como em 2005, 2006, 2007, e gargalha. Assim como minha analista, os deuses, os mortos. Porque é bonito. O ímpeto para furar a onda é a confirmação, diante do medo do outro, que deu certo tudo aquilo que me foi dito no mesmo espaço em 2007, 2008 e por aí vai. Fura, vai.
A água não vai te matar. Se você ficar embaixo quando a onda vier, não vai dar nada.
Ainda que os caldos.
Caixotes. Vacas — dizia ela.
Três.
Lembro não lembrando. Não conseguindo lembrar. Querendo. Quando as primeiras notícias vieram, a mensagem era clara: se vocês não forem, podem vir te buscar. De um lado, acabaria o colégio. Do outro, começaria o poço sem fundo, a tortura de estar num lugar irreconhecível, com pessoas que só eram minhas em sangue. Não dava. Era demais. Então me empolguei. Vamos, claro, como não ir.
Viajar, ver meus pais juntos pela primeira vez — ainda que eu não intuísse isso —, abrir as possibilidades. E na volta, entrar na escola no primeiro dia com a camisa da seleção italiana, para deixar claro que apesar de. Da. Do.
Mas o tempo passa. As informações chegam feito uma bala, explodem meus ossos, varam minha cara, meu sangue jorrado por todo o tecido do ar, da realidade. A fuga. A imagem de um jantar com uma criança obrigada a estar com quem ela não queria estar, e o que se passa na cabeça. As ligações. Eu preciso que você decida, porque telefonar é andar de casa até longe.
Você precisa decidir, dizem ao menino do filme, algo parecido. A criança precisa decidir e, na decisão, salvar o mundo — sem saber que o que disser é capaz de salvar o mundo. Daí a crueldade. Lá, no filme.
Um moleque deficiente, seja surdo ou cego, as artimanhas dos adultos e a quantidade monumental de energia, a força desprendida para. Nada. Tudo. Ou ainda.
Quatro.
Entrar no mar agora e furar as crianças de água é abrir o tribunal. O incômodo dos últimos dias converge, intuo. Aplaina.
Tento pegar umas ondas mas elas quebram no vazio. Não dá. Consigo uma, meio torto, o corpo. Digo calma, são só as ondas. Volto.
Então vem uma maior. Meu pai me pega na areia, entramos no mar em Niterói, as pranchas. Anos e anos pedindo desculpas.
Saímos e enquanto isso penso que não posso repetir meu pai, o fracasso, o timing errado, puxo com força, arrasto, vamos, vamos, anda, tenho medo de que a onda pegue e arraste e crie um rompimento de vínculo incontornável, e quando chega a água é pré-adolescente.
Os surfistas do canal Off, os meninos, adultos — o mar ensina a humildade.
Tudo volta ao lugar.
Cinco.
Ainda fica. Gruda. Dói.
Penso no menino. Como tudo em Anatomia de uma queda, está envolto na dúvida. Penso em Kramer vs. Kramer. Chegou perto, mas não era isso. Aqui, é. Sou eu na tela. O menino e o cachorro. Disse.
Ele tomou uma decisão. É nítido e irrevogável.
Eu tomei uma decisão? — Corrijo.
Não sei se foram as mesmas. Certas.
Correto.
E?
Essa foi minha foto de perfil no Orkut durante anos. Roma, 2006.
Uma recomendação:
Rita de Podestá lançou sua newsletter. Me senti abraçada e trepidando em calafrios enquanto lia. Leria muitas páginas. Leiam.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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Beijos e até a próxima ❤️
Vc era muito mini em 2006, eu já era uma moça. Sendo moça ou criança, acho que a dificuldade em estar diante dos pais e fazer uma escolha nunca seja menor. Me parece sempre doído. Um Abraço.