Terraleste #64 | Berlim
Em que chego a Berlim e penso no horror; no queer; naquilo que sou – mas não só.
Terraleste #64, Berlim
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No trem para Berlim.
Há um enorme descampado verde, muito verde, que se estende da margem da janela até a borda de uma pequena floresta, onde árvores muito altas tocam o céu. O que mais me chama atenção é a neblina, espessa, dura, caindo como uma manta por cima do verde — claro, escuro.
Quilômetros mais tarde, a caminho de Leipzig, uma plantação se estica paralela à linha do trem. Mais longe ainda, uma torre vomita um grosso rolo de fumaça branca, que se funde às nuvens como se fosse uma língua de sogra cujo papel não segurasse a pressão do ar.
O trem regional se intromete na paisagem. Flanamos por entre o perímetro urbano e casas bordejam árvores amareladas. Há grafites do lado de fora das pontes, dos muros.
Duas torres de energia eólica terminam de fechar a paisagem. Giram lentamente, como se à espera de um Dom Quixote que pode muito bem ser o sujeito na poltrona de trás, camisa azul de listra branca, óculos embaçados pela máscara mal posta. Ele dorme de braços cruzados, e meia hora antes se voltou para a entrada do vagão, onde um bebê dava porradas no plástico junto à porta. O pai, um careca de máscara frouxa, se aproximou com uma cara de poucos amigos. Ninguém no vagão parecia sentir a tensão entre eles.
O Quixote agora dorme e a criança chora. Às vezes é preciso meia hora para um possível incômodo aderir à paisagem, o que me leva a pensar qual é o momento exato em que nos conformamos com aquilo que nos aterroriza.
Domingo, já disse aqui, assisti ao debate junto com Alexandre. Dei risada quando vi pessoas comentando na internet que estavam perplexas por Sérgio Moro ter assessorado o presidente. Que só agora percebiam o que tinha estado evidente.
Não sei se tenho muita paciência para esse tipo de cinismo. As pessoas acreditam em impor à força o seu discurso e depois ficam tristes quando percebem que ele, ora só, justamente por ser simplista e carente de qualquer elaboração minimamente digna, se transforma em veículo de propaganda fascista.
A vida seria mais fácil se as pessoas se dessem contas do horror em que estão metidas — mas, claro, isso também vale para mim.
Na última edição, indaguei que outros horrores aconteciam sem que eu me desse conta, que tipo de percepção me ocorreria daqui a X quantidade de tempo, quando desde já teria sido — deveria ser — óbvio.
Não temos como saber, mas a fumaça da fábrica a caminho de Leipzig me parece uma lembrança boa o bastante de certo caráter concreto das coisas. A fumaça, o fogo, a indústria, as nuvens. É isso. Talvez uma saída resida em nos voltarmos para as nuvens e tentar entender qual é o caminho que fazem. Nem tudo que é branco no céu consiste em água.
O trem para. Chegamos a Leipzig.
Faltam duas horas até Berlim.
A primeira impressão é de algum tipo de desarranjo. Segunda-feira, durante a leitura do meu livro em Frankfurt, M.K. disse que Berlim era a única cidade grande da Alemanha. Uma cidade propriamente dita. Mas quando chego aqui, o que se revela é algo obtuso, paradoxalmente opaco: por mais que tente, não consigo ler a cidade. Ela se empilha sobre si mesma sem nenhuma lógica aparente, e as texturas de um canto não são muito reconhecíveis em outro; antes, se no Rio a favela e o asfalto conversam por contraste, aqui a herança dos lados Oriental e Ocidental parecem dominadas por um rastro só discernível com lupa. Como um muro em ziguezague.
Tomo café com M., e F. já está no trabalho. É meio-dia, faz 12 graus.
Penso que devia ter pego mais uma calça ao invés de deixar as pernas quase expostas com esse vestido. M. vai para o teatro e sigo pela margem do rio, as calçadas cheias de folhas ainda úmidas da chuva de ontem. Passando uns barcos, uma senhora de casaco rosa e cabelos amarelos, quase brancos, sorri para mim e olha na direção da água. Dois patos negros parecem esperar junto a um tronco caído, que forma uma pequena piscina. A senhora abre um saco plástico e atira nacos de pão. Um dos patos o agarra com o bico, o outro olha. Há uma pequena competição entre eles. A senhora joga mais. Me afasto.
Na estação de Jannowitzbrücke — custo a crer no tamanho desse nome —, uma jovem chama a minha atenção. É claramente trans, ou no mínimo não-binária, e usa um cabelo lindo, meio anos 20, quase 30, que talvez Myrna Loy pudesse ter usado ali por 1932. Sua boca brilha e a pele é quase feita de mármore. O nariz completa o rosto adorável. Ela não me vê, mas presto atenção e concluo que, no mundo ideal, gostaria de ser assim — ainda mais com essa bota, a calça reta, os olhos oblíquos cor de piscina.
Mais tarde, após um pequeno périplo para conseguir um chip de celular, entro no C/O para ver a exposição Queerness in photography. É um bálsamo e uma constelação na galáxia que Frankfurt havia aberto em meu peito.
Um enorme canto de parede está forrado pela foto de três trans. Minha atenção fica presa à do meio, cujo olhar penetrante me invade. Está usando um vestido bonito, e a maquiagem é sutil — apenas marca uma posição bem definida. Sinto vontade de chorar. Uma vontade incontrolável, que vem de dentro e que surgiu minutos antes, assim que adentrei o hall escuro e vi centenas de imagens de homens e mulheres que, no passado, ousaram desafiar o status quo em nome da própria liberdade.
A figura do meio é prisioneira de guerra, circa 1915, descubro na internet horas depois, ainda impactado. O texto dessa seção dá conta das experiências queer em campos de prisioneiros entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais. Por causa do trauma, soldados capturados se travestiam como forma de se desconectar do mundo real.
Os três soldados galeses, transformados em adoráveis senhoritas, parecem me dizer tudo aquilo que sempre fabulei e nunca soube colocar em prática.
Estão ali, de 1915 até agora, os desejos da minha infância e o projeto para o futuro.
É assim que Berlim surge. Na saída do C/O, zanzando em volta da estação do zoológico, sem pensar tanto em Christiane F., me dou conta de que essa cidade não precisa acolher; precisa funcionar. E justamente porque funciona, porque suas pessoas podem ser livres e andar na rua sem ser incomodadas, questões óbvias ficam para trás. Sai o medo de andar de vestido e entra, sei lá, como pagar a conta de luz. Porque o modo de existir no mundo é seu, e ninguém tem nada a ver com isso. Porque sua sexualidade não deveria importar a ninguém.
Acho que Berlim, em alguma língua, deveria dizer esperança. Mais ou menos como uma névoa que corre paralela ao trem, por centenas de metros, e desaparece com a chegada da mata. A floresta como última barreira contra a opacidade. Soldados, maridos, filhas da sociedade, operários e toda sorte de desviantes de uma moral canalha, vivos como árvores, furando a neblina. Derrubando o muro. Zig. Zag. Zig. Zag.
Sério <3
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
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