T. me escreveu para dizer que, nos meus relatos, “a vida à beira-mar parece mais ‘crua’”. Fiquei pensando sobre isso, sobre o gesto de escrever na praia, que comentei na última newsletter. E o que me veio foi uma coisa só: realidade.
Cresci lendo literatura policial. Minha visão literária das coisas, por assim dizer, esteve desde sempre moldada por uma impossibilidade de me desvincular do corpo, da carne. Nunca li Harry Potter, nunca me interessei, quando criança, por livros de fantasia — li os cinco volumes de “Game of Thrones” para escapar de um término, há 10 anos, e gostei, mas porque as intrigas e as políticas se sobrepunham à magia.
Desde criança, me interessa o que o concreto, a planta e o pulmão são capazes de fazer.
Capturar a realidade é outro nome para apreender a luz. Dar contorno. Garantir que as coisas não sumam. Não sei se estou tendo sucesso, se essas coisas fazem sentido; no entanto, insisto. Insisto como penetrasse uma mata fechada carregando na ponta da mão um machete para cortar... nada. Não é possível podar uma floresta, e a realidade é uma hera indomável fustigando os terrenos, abrindo caminho entre os territórios. O que importa é sentir.
Quando escrevo o mar, a paisagem, os ladrões, escrevo as sensações da água, do sol queimando o alto das montanhas — uma cidade de mar e montanhas! —, o toque dos pés correndo nas pedras portuguesas. Tudo é tátil quando não é finito. Do contrário não existiria realidade, e nem literatura.
Mas também leia o que não falo. O falso vazio ao redor de uma cena. As pessoas que presenciam um roubo no Arpoador, pleno domingo, o recepcionista do hotel trancado lá o dia todo — e agora, quando escrevo isso, a família desse recepcionista, os antepassados, o piloto que trouxe as pessoas na cobertura tirando foto, alheias ao roubo. A vida na praia é a vida, se faz de silêncio e sal.
Antes, no ônibus, voltando do shopping.
Passamos pela sede do Botafogo, observo o outro shopping — são vários — e penso que havia um estádio. Tentaram demolir Garrincha, mas isso não é possível. Ainda está ali.
O ônibus para no sinal fechado.
O sujeito na janela — calça jeans, camisa do Flamengo — olha para fora: uma senhora loira num Land Rover prata.
— Era só uma coroa e um carrão desses — ele diz. Enquanto estivermos emparelhados, não vai tirar o olho da mulher, que parece falar no viva-voz, protegida na sua redoma de ar-condicionado.
Dentro do ônibus o calor é abissal, úmido, atlântico.
Praia de Ipanema, 18h23.
Passa um sujeito forte, vendedor de amendoim. Me estende a mão e um punhado.
— Não, valeu, obrigad.
— Só pra não me deixar no vácuo — ele diz, sério. — Experimenta.
E vai embora.
Deixo minhas coisas com duas mulheres, mãe e filha. Esta última deve regular comigo em idade. Nas suas costas há uma tatuagem escrito “be your own sun”. Fico me perguntando por que justo em cima da espinha dorsal — e é o tempo de digitar para entender
Lembro na hora: a luz branca, algo azul em volta. A coluna. O líquor. O doutor Eduardo — jovem, sorriso lindo — dizendo Vamos precisar operar a terceira vez.
Faz sol. Mas estranhamente não queima como antes. Um sol-lâmina em vez de sol-brasa. Mas tudo arde.
Passam dois sujeitos anunciando 3 hambúrgueres por 10 reais; salgadão com refresco; vendedores de camarão, esfiha e tudo mais.
As duas mulheres decidem ir no mar. Perguntam se não vou mergulhar de novo.
— Daqui a pouco — respondo, enquanto penso que nunca vi um mar assim.
Atravesso as ondas, nado até o meio, estou longe o suficiente para ver todo o contorno da cidade, os prédios, as montanhas sombreadas pelo brilho excessivo do sol. Os peixes me rondam e há quinze anos eu teria um medo constrangido, que agora desaparece. São apenas peixes, um cardume que me enrosca de sal.
Então o ruído some.
Fico no meio da água em silêncio, nenhum som me chega, nenhum som vai embora. O mundo preso aqui dentro. A realidade se incha de um interior profundo, turvo, e é nessa mancha que fico confortável. Tudo brilha. As imagens são nítidas. Não existe nada mais puro. Está tudo aqui. O concreto, a folha, o pulmão.
Um fim de tarde na praia.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
Se você curtiu, me escreve. Basta responder este e-mail.
Se não curtiu, também me diga. É sempre bom saber como melhorar.
Beijos e até a próxima ❤️
Eu amo a tua escrita! É puro sentimento (e nada mais real do que sentir)
cara, como vc escreve bem!