Terraleste #87 | Equilibrando na corda
Em que a microfísica do cancelamento e o Papa me fazem refletir sobre a internet — mas não só.
Eu acreditei no Papa com casaco style.
Não tenho nenhum problema em admitir isso, já faz um tempo que parei de me importar com cair ou não em determinadas pegadinhas — muito diferente de acreditar em fake news e vídeos escalafobéticos claramente fake. Mas, sim, alguém pode argumentar, é possível dizer que o Papa de casaco style também está nisso, porém acho temeroso juntar tudo no mesmo balaio, como se só existisse um único fake e a realidade e a internet estivessem condenadas a uma única percepção, passado e presente num mesmo continuum real ou não. Acho que não é bem assim.
Vi muita gente zombando de quem acreditou no Papa fake, como se estivesse óbvio. Quando a imagem saiu, uma amiga da moda disse no Twitter que o novo estilista do Vaticano, e ela deu o nome, era um acerto, algo assim. E aí, dois dias depois, descobri que era fake. Fico pensando se não estamos todas tentando o tempo todo estar por cima. Como se tivéssemos de ser o tempo todo criaturas infalíveis, cheias de momentos graves, densos, em que o erro, ou melhor, a não-percepção, a ausência daquela esperteza/perspicácia momentânea, não fosse possível. Como se tivéssemos que estar cem por cento vigilantes.
A pior coisa da internet, acho, e já venho pensando nisso há um tempo, é nos transformar em grandes monstros unos, indivisíveis, a cada segundo. Aquele momento em que você é cancelada e toda a sua vida parece ruir. Como se nunca mais houvesse a possibilidade de se refazer, de se transformar em alguém melhor. Como se o continuum da internet te transformasse na pior pessoa do mundo.
Não é bem assim.
Dia desses lembrei de quando twittei, faz alguns anos, que tinha tomado o ônibus com um dos moleques que faziam bullying comigo na escola, me davam porrada. E eu lembro que olhei pra ele com raiva — porque na minha memória, mais de dez anos depois, ele ainda era aquele moleque que se achava o suprassumo do poder masculino heterossexual. Se eu acreditar nisso em 2023 então o mundo acabou. Não dá.
Mas é exatamente isso que a internet faz.
Pensando aqui numa microfísica do cancelamento. Essas pequenas disputas diárias, totalitárias, pela perfeição que evitaria o cancelamento. Todo mundo andando numa corda fina, balançando, com medo de cair no abismo e ter que subir de novo na corda e ficar caminhando. A imagem que me vem à cabeça é a ponte da Urca, na minha adolescência, quando os meninos pulavam nas águas sujas numa demonstração inequívoca da sua arrogância adolescente, o domínio do corpo sobre o mundo, aquele indivíduo, uno, perfeito, músculo e osso diante da humanidade. E eu lá, segurando a bicicleta com medo, a voz da minha mãe dizendo Você tá maluco, pular da ponte da Urca? Mas não era só isso. Tinha a subida. Até hoje, quando pedalo e vejo meninos pulando — quase todos negros, por que será? —, sinto calafrio na visão da subida. Tem que fazer esforço, contornar o limo, arriscar ralar a pele nas pedras que já viram tanta água.
Mas não é assim?
Não precisa de cancelamento pra querer mudar, mas o cancelamento, principalmente quando você é jovem, digamos, adolescente, pós-adolescente imediato, ajuda. Dá impulso. Pra você, digamos, chegar na véspera dos 30 na melhor versão de si — uma versão honesta. Mas também é preciso ignorar a corda. Talvez pular, dizer cansei de brincar e subir pra casa, deixar todo mundo na quadra e, sei lá, jogar um videogame, ler, deitar e dormir. Viver fora da internet.
Eu acho que cedi muito espaço pra internet na minha vida. Usei o Twitter de diário — eu tinha 15 anos quando entrei, imaginem —, dei condição para que meu horror se pronunciasse num palco que, honestamente, não fazia sentido. Levei muitos anos pra entender que aquilo não era o melhor lugar do mundo. Não é. Não pode ser.
Essa semana saiu uma lista das redes sociais mais populares no Brasil. O Twitter está em nono lugar, algo assim. No entanto, seu impacto é gigantesco. A gente leva a internet muito a sério quando na verdade ela deveria ser um misto de enciclopédia e álbum de fotografias. E só. Não tenho mais interesse em transformar a vida num longo bullet-journal, pequenas notas complicadas que vão se perder numa vastidão de notas descomplicadas, piadas, desabafos, linchamentos.
Tem um tweet do Tyler, the Creator que acho providencial agora: ele faz uma piada dizendo que cyberbullying não existe, é só desligar o monitor e sair fora. Bem, é claro que cyberbullying existe, é claro que a internet impacta, mas os últimos dois anos trouxeram um argumento no Twitter diante de certas problematizações: isso não existe fora daqui. E algumas coisas não existem mesmo.
Eu não quero me transformar numa versão virtual de mim mesma. Eu quero poder usar a internet e sair. Olhar o sol. Abraçar Maria Isabel. As máquinas foram criadas por nós. Nós deveríamos ter o dever de desligá-las. Nós deveríamos poder fazer isso.
Do contrário, o congelamento do tempo vai nos fazer acreditar que há anos, dentro da bolha, somos as mesmas pessoas. Que eu sou a mesma da minha adolescência, que R. no ônibus ainda é o mesmo da escola, e que a mudança, quando vem, não existe, ou melhor, é rápida demais, como se não houvesse toda uma vida fora da internet. Como se a gente não vivesse.
E, na boa, com todas as dores dos últimos anos, viver é a melhor coisa.
A internet ainda não conseguiu emular isso. E é por isso que ela luta todos os dias para nos matar.
Por fim, uma tirinha da Turma da Mônica. Lembro dela direitinho, mas agora não sei se é o Titi ou o Cebolinha: o menino passa o dia inteiro jogando no computador, conversando com os amigos, se divertindo. Ao final, desliga o aparelho e deita no colo da mãe, que termina a tirinha dizendo: o computador tem tudo, menos colo de mãe [algo assim]. É bonito porque é real.
Ou a gente busca o colo aqui, na carne, ou vamos ficar acreditando em ficções mais perniciosas que uma foto do Papa de casaco estilosíssimo.
Pior pro chatGPT.
Tenho lido newsletters incríveis. Deixo aqui a recomendação expressa de que vocês leiam a da Carol Bensimon — de longe a minha preferida — e a última da Carina Bacelar — como escreve bem.
Twitter não tem isso.
É isso. Semana que vem talvez tenha mais.
Se você curtiu, me escreve. Basta responder este e-mail.
Se não curtiu, também me diga. É sempre bom saber como melhorar.
Beijos e até a próxima ❤️
Cara, gostei muito desse texto, muito mesmo. São assuntos nos quais penso com alguma frequência -- gente de quem peguei birra por um tweet feito 10 anos atrás e que na verdade agora são pessoas excelentes, mas que guardei um espaço reservado de ressentimento idiota por uma bobagem.
A gente precisa urgentemente acreditar que as pessoas mudam. Do contrário, estamos fudidos. A maioria dos brasileiros apoiou B17 em 2018, e se 60% dos brasileiros permanecerem assim, estamos todos lascados. Em menos escala, muita gente fez coisa idiota na adolescência ou na jovem-adultez e aprendeu com seus erros e mudou; é preciso estar aberto e aceitar que as pessoas mudam (nem sempre para melhor, claro). Mas a internet é uma máquina de trazer o pior de cada ser humano e de eternizar opiniões raivosas e impensadas.
Acho que a internet dá vazão a um hábito muito nosso de classificar o mundo de forma maniqueísta. É mais um território pra isso. A diferença é a proporção que as coisas ganham, e a forma como as narrativas ficam registradas, alterando o esquecimento na forma como ele operava antes (?). Muitas coisas problemáticas nas redes, mas outras muito legais. E falando em coisas boas, muito obrigada pela indicação, feliz que a loucurinha que eu postei fez algum sentido por aí ❤️